sexta-feira, 31 de agosto de 2012

O desafio sul-americano, por Samuel Pinheiro Guimarães


Carta Maior, 30/08/2012

Samuel Pinheiro Guimarães: O desafio sul-americano

O principal desafio da política externa brasileira no século XXI será a América do Sul. No processo de construção da integração América do Sul é preciso vencer o pessimismo interessado daqueles que, externa e internamente, não acreditam no potencial nem do Brasil, nem do Mercosul, nem da América do Sul, e que preferem sonhar com a volta ao regaço do colonialismo, até recentemente sob as roupagem tentadoras, agora meio esfrangalhadas, da globalização equânime, do livre comércio e da auto regulação dos mercados. O artigo é de Samuel Pinheiro Guimarães.

Samuel Pinheiro Guimarães - Especial para Carta Maior

1. O principal desafio da política externa brasileira no século XXI será a América do Sul.

2. A América Central e o Caribe, a América do Norte, a Europa, a África e a Ásia serão áreas de grande interesse, mas nenhuma delas apresenta para a política externa brasileira a mesma complexidade do que a América do Sul.

3. As relações do Brasil com cada país da América do Sul são fundamentais tanto bilateralmente como para a defesa dos interesses do país na esfera multilateral, em suas dimensões política, econômica e militar.

4. A característica essencial dessas relações são as assimetrias de ordem econômica, política e militar entre o Brasil e cada um de seus nove vizinhos de fronteira e os outros dois vizinhos de região, o Chile e o Equador.

5. O território brasileiro é cerca de três vezes o território da Argentina, que é o segundo maior da América do Sul, com seus quase três milhões de Km² o que naturalmente inclui as Ilhas Malvinas, Sandwich e Geórgia do Sul, ocupadas ilegalmente pela Inglaterra. A extraordinária extensão do território brasileiro, o quinto maior do mundo, significa que a possibilidade de o Brasil deter uma gama mais diversificada de recursos minerais assim como a de ter uma produção agrícola maior e mais variada é maior, em princípio, o que, aliás, já ocorre, do que a de seus vizinhos.

6. A população brasileira é quase cinco vezes a da Argentina (41 milhões) ou quatro vezes a da Colômbia (47 milhões), as duas maiores depois do Brasil, mas chega a ser 60 vezes a do Uruguai, com seus 3,3 milhões de habitantes. Quanto maior a população, maior a possibilidade de, superadas as extraordinárias desigualdades de renda, ter um mercado interno maior e de assim lograr construir uma economia industrial mais sofisticada e com um número de setores mais amplo.

7. Por esta razão, o Brasil, em comparação com seus vizinhos, logrou estruturar uma economia industrial e de serviços muito maior, mais sofisticada e diversificada.

8. No campo político, o Brasil soube nos últimos anos estreitar suas relações com os países africanos da Costa Ocidental, com os países árabes e ainda que em menor escala com os países asiáticos, exceto no caso especial da China, com os países chamados do Sul, no que o Presidente Lula e o Chanceler Celso Amorim chamaram de uma nova geografia econômica e política mundial.

9. No caso da África, o fato de ser o Brasil o segundo maior país do mundo em população negra; de não haver legislação de natureza discriminatória ainda que haja preconceito, porém cada vez menor; de estarem sendo executadas firmes políticas de igualdade racial; de serem implementadas amplas políticas de combate à pobreza; de ter tido relativo êxito em seu processo de industrialização; de existirem semelhanças de desafios sociais, tais como na educação, na saúde, na pobreza, na habitação e do êxito de vários programas brasileiros nessas áreas; de existirem desafios econômicos semelhantes, como na agricultura de cerrado e na construção da infraestrutura; de o Brasil desenvolver políticas de cooperação técnica e financeira sem imposição de condicionalidades, como faziam as potências coloniais e fazem as neocoloniais, tudo isto explica o êxito da política brasileira com a África.

10. Com o Oriente Próximo, o equilíbrio do Brasil em relação à situação na Palestina; a defesa de uma solução pacífica para a questão do Iraque antes da eclosão da Segunda Guerra do Golfo; a cooperação técnica com a Autoridade Palestina; a iniciativa com a Turquia junto ao Irã, para permitir o encaminhamento de uma solução pacífica para as pressões americanas (e dos seus coadjuvantes ocidentais) sobre o programa nuclear iraniano, aliás, nos termos de uma carta do Presidente Obama em que ele detalhava as exigências ocidentais, tudo isto são fatores que tem contribuído para a expansão das relações comerciais e políticas do Brasil com os países do Oriente Próximo.

11. Este esforço de diversificar a política externa brasileira ocorreu sem que fossem abandonados ou prejudicados os laços tradicionais, especialmente econômicos, com os países da Europa Ocidental e com os Estados Unidos.

12. As políticas domésticas de incorporação de grandes massas da população à economia moderna e ao mercado de consumo, tais como Bolsa Família, o Luz para Todos, o crédito popular, e os programas de construção da infraestrutura e o tratamento correto ao capital estrangeiro tiveram seu papel.

13. Assim, a equidistância e independência serena da política externa brasileira, a estabilidade democrática, o equilíbrio macroeconômico, os superávits do comércio exterior, as condições do mercado interno brasileiro e seu potencial fizeram com que, nos últimos anos, o influxo de capitais estrangeiros, mesmo depois da crise, venha sendo excepcional, em especial aquele proveniente dos Estados Unidos e da Europa, e em tempos mais recentes, da China.

14. Nem as relações com os Estados Unidos e com a Europa, alvejados pela crise que não dá sinais de fim; nem todo o extraordinário potencial das relações com a África; nem a complexidade da situação do Oriente Próximo, com seu potencial explosivo; nem as relações com a Ásia e com o seu centro dinâmico a China, em sua crescente disputa com os Estados Unidos, nada disto poderá trazer para o Brasil os mesmos desafios que traz a América do Sul.

15. O desafio da política externa brasileira estará na América do Sul.

16. Em um mundo crescentemente multipolar, em que a ação americana é onipresente e poderosa, e no qual as negociações internacionais tendem a ter cada vez maior importância não só para definir as relações entre os Estados mas para fixar parâmetros para políticas domésticas, é de grande relevância a constituição de um bloco de Estados na América do Sul, tanto para aqueles de menor como para aqueles de maior dimensão, como a Argentina e o Brasil. Nas negociações internacionais a cada Estado corresponde um voto seja ele um micro Estado do Pacífico seja ele a maior Potência do mundo. A título de exemplo, nas recentes eleições para Diretor Geral da FAO o brasileiro José Graziano da Silva foi eleito por quatro votos... Os Estados de menor dimensão, se isolados, se encontram numa posição de maior fragilidade na defesa de seus interesses ou tendem a ser absorvidos por blocos maiores liderados por países desenvolvidos onde seus interesses se diluem. Mas o mesmo ocorre com os países de maior dimensão. À própria Alemanha interessa a existência e a participação na União Européia. Para o Brasil a construção de um bloco sul-americano é um objetivo estratégico mais do que fundamental: é essencial. Muitos são os desafios a enfrentar para tornar realidade este projeto.

17. As dimensões da economia brasileira, a variedade de sua produção exportável, a dimensão de suas empresas faz com que o Brasil tenda a ter um superávit comercial significativo e crônico com praticamente cada país da América do Sul. Nossa produção industrial é mais diversificada e nossa produção agrícola é semelhante à dos países vizinhos e, quando menos competitiva, é capaz de articular mecanismos de defesa que impedem ou dificultam a concorrência externa.

18. As dimensões da economia brasileira fazem com que as empresas brasileiras sejam muito maiores do que as empresas dos países vizinhos.

19. Devido às limitações do mercado interno brasileiro, decorrentes da concentração de renda, as empresas brasileiras de capital nacional procuram expandir suas operações para o exterior, natural e inicialmente para os países vizinhos.

20. Essas empresas brasileiras tendem a adquirir empresas locais existentes, o que configura um processo de desnacionalização, ou, quando vem a construir capacidade instalada nova, tendem a ser produtoras concorrentes das empresas locais.

21. À medida que empresas brasileiras assumem um papel relevante em um determinado setor, sua atividade passa a ser vital para a economia do país vizinho onde estão instaladas.

22. Assim, quando o governo local edita leis de regulamentação do setor onde atuam essas empresas e elas consideram, com ou sem razão, que seus interesses (o que significa, em geral, os seus lucros) estão sendo atingidos passam elas a “agir” junto ao governo local e, em caso de insucesso, passam a procurar a ajuda do governo de seu país de origem, isto é do Brasil.

23. Estas situações tenderão naturalmente a ocorrer e, certamente, o Brasil não dispõe dos recursos de poder para impor aos países vizinhos a sua (isto é, dessas empresas) vontade para modificar a legislação do país onde se encontram e assim, não só por razões de princípio como de conveniência, o Brasil terá de se aferrar ao princípio de não intervenção nos assuntos internos de outros países, como determina sua Constituição, para evitar receber a pecha de imperialista ou, o que é pior, de subimperialista.

24. As relações entre os países vizinhos e o Brasil tenderão a se tornar mais complexas à medida que se ampliem os fluxos migratórios desses países para o Brasil em decorrência da magnitude do mercado brasileiro, de dificuldades econômicas e políticas nos países vizinhos, do diferencial das taxas de crescimento econômico e de maiores oportunidades de emprego.

25. As relações do Brasil com os países vizinhos se tornaram ainda mais complexas devido à política exterior norte americana para a América do Sul, em especial em período de grave e prolongada crise econômica e de primórdios da longa disputa pela hegemonia com a China.

26. Os Estados Unidos, na execução de sua política externa para a região, continuarão a procurar celebrar acordos de livre comércio com os países da região e nesta estratégia desintegrar o Mercosul e desestabilizar os governos da região que se opõem mais frontalmente às políticas americanas tais como a Venezuela, o Equador e a Bolivia. Ademais, estimulam projetos, como a Aliança do Pacífico, de iniciativa mexicana que envolve a Colômbia, o Chile e o Peru, que se propõem a ser um contraponto ao Mercosul.

27. A China, por sua vez, em sua estratégia de controlar o acesso a recursos naturais e em abrir mercados para suas exportações procurava fazer algo semelhante ao propor e negociar acordos de livre comércio com os países da América do Sul como fez agora aos países do Mercosul.

28. Tanto a ação dos Estados Unidos como a da China afetam o que deve ser o principal objetivo estratégico da política exterior brasileira: a construção de um polo econômico e político na América do Sul.

29. Os Estados Unidos, através de sua política de expansão comercial que tem como um de seus instrumentos a desvalorização do dólar pela quantitative easing (ampliação da oferta de dólares) e a China, pela sua política de exportação de manufaturados, afetam a economia brasileira gerando um processo de desindustrialização que, por sua vez, atinge os laços de comércio entre os países do Mercosul e da América do Sul, cuja base é o comércio de manufaturas.

30. Por outro lado, cerca de 90% do comércio intra Mercosul é o comércio entre Brasil e Argentina e cerca de 40 a 50% do comércio entre Brasil e Argentina corresponde a automóveis e autopeças, sendo um comércio entre megaempresas multinacionais, organizado pelos Estados, de acordo com as normas do acordo automotivo.

31. Ademais, a participação das megaempresas multinacionais nas economias e no comércio exterior nos países do Mercosul é notável. Mesmo a exportação de produtos agrícolas (commodities) é controlada por megaempresas multinacionais como a Dreyfus, a Cargill, a Bunge. O comércio intra Mercosul é em grande parte um comércio organizado pelas empresas multinacionais, de acordo com seu planejamento global de produção e de comércio.

32. Assim, caberia ao Brasil como maior economia do Mercosul e da América do Sul, em conjunto com a Argentina, fortalecer sua indústria e a dos demais países do Mercosul através de uma política de comércio organizado, sem insistir no mito de um comércio livre que, na realidade, não existe já que é organizado de fato por multinacionais; fortalecer os atrativos do Mercosul para os países menores já integrantes ou candidatos ao Mercosul através da ampliação do Fundo para a Convergência Estrutural do Mercosul - FOCEM; criar linhas de créditos que estimulassem as empresas brasileiras a fazer investimentos na América do Sul e no Mercosul para ampliar a capacidade instalada nos países e não para adquirir empresas existentes; reforçar de forma significativa os programas de cooperação técnica, inclusive na área militar; instalar unidades de instituições brasileiras de pesquisa como a Embrapa, a Fiocruz, o IPEA e outras nos países da América do Sul; e finalmente fortalecer os centros de pesquisas nacionais desses países.

33. Neste processo, de construção da América do Sul é preciso vencer o pessimismo interessado daqueles que, externa e internamente, não acreditam no potencial nem do Brasil, nem do Mercosul, nem da América do Sul, e que preferem sonhar com a volta ao regaço do colonialismo, até recentemente sob as roupagem tentadoras, agora meio esfrangalhadas, da globalização equânime, do livre comércio e da auto regulação dos mercados.
 
 
Fonte: http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=20802


sábado, 18 de agosto de 2012

Mercosul X nova Alca X China : a necessidade de integrar a América do Sul para sobreviver à competição entre os gigantes

Agência Carta Maior, 17/08/2012

Mercosul versus a nova Alca versus a China



Hoje, o embate político, econômico e ideológico na América do Sul se trava entre os Estados Unidos, a maior potência do mundo; a crescente presença chinesa, com suas investidas para garantir acesso a recursos naturais, ao suprimento de alimentos e de suas exportações de manufaturas; e as políticas dos países do Mercosul, que ainda entretém aspirações de desenvolvimento soberano, pretendem atingir níveis de desenvolvimento social elevado e que sabem que, para alcançar estes objetivos, a ação do Estado, é indispensável. O artigo é de Samuel Pinheiro Guimarães.

Samuel Pinheiro Guimarães (*)



1. Todo o noticiário sobre Mercosul, Aliança do Pacífico, Parceria Transpacífica e China tem a ver com um embate ideológico entre duas concepções de política de desenvolvimento econômico e social.

2. A primeira dessas concepções afirma que o principal obstáculo ao crescimento e ao desenvolvimento é a ação do Estado na economia.

3. A ação direta do Estado na economia, através de empresas estatais, como a Petrobrás, ou indireta, através de políticas tributárias e creditícias para estimular empresas consideradas estratégicas, como a ação de financiamento do BNDES, distorceria as forças de mercado e prejudicaria a alocação eficiente de recursos.

4. Nesta visão privatista e individualista, uma política de eliminação dos obstáculos ao comércio e à circulação de capitais; de não discriminação entre empresas nacionais e estrangeiras; de eliminação de reservas de mercado; de mínima regulamentação da atividade empresarial, inclusive financeira; e de privatização de empresas estatais conduziria a uma eficiente divisão internacional do trabalho em que todas as sociedades participariam de forma equânime e atingiriam os mais elevados níveis de crescimento e desenvolvimento.

5. Esta visão da economia se fundamenta em premissas equivocadas. Primeiro, de que todos os Estados partem de um mesmo nível de desenvolvimento, de que não há Estados mais e menos desenvolvidos. Segundo, de que as empresas são todas iguais ou pelo menos muito semelhantes em dimensão de produção, de capacidade financeira e tecnológica e de que não são capazes de influir sobre os preços. Terceiro, de que há plena liberdade de movimento da mão de obra entre os Estados. Quarto, de que há pleno acesso à tecnologia que pode ser adquirida livremente no mercado. Quinto, de que todos os Estados, inclusive aqueles mais desenvolvidos, seguem hoje e teriam seguido passado esse tipo de políticas.

6. Como é obvio, estas premissas não correspondem nem à realidade da economia mundial, que é muito, muito mais complexa, nem ao desenvolvimento histórico do capitalismo.

7. Historicamente, as nações hoje altamente desenvolvidas utilizaram uma gama de instrumentos de política econômica que permitiram o fortalecimento de suas empresas, de suas economias e de seus Estados nacionais. Isto ocorreu mesmo na Inglaterra, que foi a nação líder do desenvolvimento capitalista industrial, com a Lei de Navegação, que obrigava o transporte em navios ingleses de todo o seu comércio de importação e exportação; com a política de restrição às exportações de lã em bruto e às importações de tecidos de lã; com as restrições à exportação de máquinas e à imigração de “técnicos”.

8. Políticas semelhantes utilizaram a França, a Alemanha, os Estados Unidos e o Japão. Países que não o fizeram naquela época, tais como Portugal e Espanha, não se desenvolveram industrialmente e, portanto, não se desenvolveram.
 


9. Se assim foi historicamente, a realidade da economia atual é a de mercados financeiros e industriais oligopolizados em nível global por megaempresas multinacionais, cujas sedes se encontram nos países altamente desenvolvidos. A lista das maiores empresas do mundo, publicada pela revista Forbes, apresenta dados sobre essas empresas cujo faturamento é superior ao PIB de muitos países. Das 500 maiores empresas, 400 se encontram operando na China. Os países altamente desenvolvidos protegem da competição estrangeira setores de sua economia como a agricultura e outros de alta tecnologia. Através de seus gigantescos orçamentos de defesa, todos, inclusive a Alemanha e o Japão, que não poderiam legalmente ter forças armadas, subsidiam as suas empresas e estimulam o desenvolvimento cientifico e tecnológico. Com os programas do tipo “Buy American” e outros semelhantes, privilegiam as empresas nacionais de seus países; através da legislação e de acordos cada vez mais restritivos de proteção à propriedade intelectual, dificultam e até impedem a difusão do conhecimento tecnológico. Através de agressivas políticas de “abertura de mercados” obtém acesso aos recursos naturais (petróleo, minérios etc) e aos mercados dos países periféricos, em troca de uma falsa reciprocidade, e conseguem garantir para suas megaempresas um tratamento privilegiado em relação às empresas locais, inclusive no campo jurídico, com os acordos de proteção e promoção de investimentos, pelos quais obtém a extraterritorialidade. Como é sabido, protegem seus mercados de trabalho através de todo tipo de restrição à imigração, favorecendo, porém, a de pessoal altamente qualificado, atraindo cientistas e engenheiros, colhendo as melhores “flores” dos jardins periféricos.

10. A segunda concepção de desenvolvimento econômico e social afirma que, dada a realidade da economia mundial e de sua dinâmica, e a realidade das economias subdesenvolvidas, é essencial a ação do Estado para superar os três desafios que tem de enfrentar os países periféricos, ex-colônias, algumas mais outras menos recentes, mas todas vítimas da exploração colonial direta ou indireta. Esses desafios são a redução das disparidades sociais, a eliminação das vulnerabilidades externas e o pleno desenvolvimento de seu potencial de recursos naturais, de sua mão de obra e de seu capital.

11. As extremas disparidades sociais, as graves vulnerabilidades externas, o potencial não desenvolvido caracterizam o Brasil, mas também todas as economias sul-americanas. A superação desses desafios não poderá ocorrer sem a ação do Estado, pela simples aplicação ingênua dos princípios do neoliberalismo, de liberdade absoluta para as empresas as quais, aliás, levaram o mundo à maior crise econômica e social de sua História: a crise de 2007. E agora, Estados europeus, pela política de austeridade (naturalmente, não para os bancos) que ressuscita o neoliberalismo, atacam vigorosamente a legislação social, propagam o desemprego e agravam as disparidades de renda e de riqueza. Mas isto é tema para outro artigo.

12. Assim, neste embate entre duas visões, concepções, de política econômica, a aplicação da primeira política, a do neoliberalismo, levou à ampliação da diferença de renda entre os países da América do Sul e os países altamente desenvolvidos nos últimos vinte anos até a crise de 2007. Por outro lado, é a aplicação de políticas econômicas semelhantes, que preveem explicitamente a ação do Estado, que permitiu à China crescer à taxa média de 10% a/a desde 1979 e que farão que a China venha a ultrapassar os EUA até 2020. Ainda assim, há aqueles que na periferia não querem ver, por interesse ou ideologia, a verdadeira natureza da economia internacional e a necessidade da ação do Estado para promover o desenvolvimento. Nesta economia internacional real, e não mitológica, é preciso considerar a ação da maior Potência.

13. A política econômica externa dos Estados Unidos, a partir do momento em que o país se tornou a principal potência industrial do mundo no final do século XIX e em especial a partir de 1945, com a vitória na Segunda Guerra Mundial, e confiante na enorme superioridade de suas empresas, tem tido como principal objetivo liberalizar o comércio internacional de bens e promover a livre circulação de capitais, de investimento ou financeiro, através de acordos multilaterais como o GATT, mais tarde OMC, e o FMI; de acordos regionais, como era a proposta da ALCA e de acordos bilaterais, como são os tratados de livre comércio com a Colômbia, o Chile, o Peru, a América Central e com outros países como a Coréia do Sul. E agora as negociações, altamente reservadas, da chamada Trans-Pacific Partnership - TPP, a Parceria Transpacífica, iniciativa americana extremamente ambiciosa, que envolve a Austrália, Brunei, Chile, Malásia, Nova Zelândia, Peru, Singapura, Vietnã, e eventualmente Canadá, México e Japão, e que, nas palavras de Bernard Gordon, Professor Emérito de Ciência Política, da Universidade de New Hampshire, “adicionaria bilhões de dólares à economia americana e consolidaria o compromisso político, financeiro e militar dos Estados Unidos no Pacifico por décadas”. O compromisso, a presença, a influência dos Estados Unidos no Pacifico isto é, na Ásia, no contexto de sua disputa com a China. A TPP merece um artigo à parte.

14. Através daqueles acordos bilaterais, procuram os EUA consagrar juridicamente a abertura de mercados e obter o compromisso dos países de não utilizar políticas de desenvolvimento industrial e de proteção do capital nacional. Não desejam os Estados Unidos ver o desenvolvimento de economias nacionais, com fortes empresas, capazes de competir com as megaempresas americanas, por razões óbvias, entre elas a consequente redução das remessas de lucros das regiões periféricas para a economia americana. Os lucros no exterior são cerca de 20% do total anual dos lucros das empresas americanas!

15. Nas Américas, a política econômica dos Estados Unidos teve sempre como objetivo a formação de uma área continental integrada à economia americana e liderada pelos Estados Unidos que, inclusive, contribuísse para o alinhamento político de cada Estado da região com a política externa americana em seus eventuais embates com outros centros de poder, como a União Européia, a Rússia e hoje a China.

16. Assim, já no século XIX, em 1889 , no mesmo ano em que Deodoro da Fonseca proclamou a República, na Conferência Internacional Americana, em Washington, os Estados Unidos propuseram a criação de uma união aduaneira continental. Esta proposta, que recebeu acolhida favorável do Brasil, no entusiasmo pan-americano da recém-nascida república, foi rejeitada pela Argentina e outros países.

17. Com a I Guerra Mundial, a Grande Depressão, a ascensão do nazismo e a Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos procuraram estreitar seus laços econômicos com a América Latina, aproveitando, inclusive, a derrota alemã e o retraimento francês e inglês, influências históricas tradicionais.

18. Em 1948, na IX Conferência Internacional Americana, em Bogotá, propuseram novamente a negociação de uma área de livre comércio nas Américas; mais tarde, em 1988, negociaram o acordo de livre comércio com o Canadá, que seria transformado em Nafta com a inclusão do México, em 1994; e propuseram a negociação de uma Área de Livre Comércio das Américas, a ALCA, em 1994.

19. A negociação da ALCA fracassou em parte pela oposição do Brasil e da Argentina, a partir da eleição de Lula, em 2002 e de Kirchner, em 2003 e, em parte, devido à recusa americana de negociar os temas de agricultura e de defesa comercial, o que permitiu enviar os temas de propriedade intelectual, compras governamentais e investimentos para a esfera da OMC, o que esvaziou as negociações.

20. O objetivo estratégico americano, todavia, passou a ser executado, agora com redobrada ênfase, através da negociação de tratados bilaterais de livre comércio, que concluíram com o Chile, a Colômbia, o Peru, a América Central e República Dominicana, só não conseguindo o mesmo com o Equador e a Venezuela devido à eleição de Rafael Correa e de Hugo Chávez e à resistência do Mercosul às investidas feitas junto ao Uruguai.

21. Assim, a estratégia americana tem tido como resultado, senão como objetivo expresso, impedir a integração da América do Sul e desintegrar o Mercosul através da negociação de acordos bilaterais, incorporando Estado por Estado na área econômica americana, sem barreiras às exportações e capitais americanos e com a consolidação legal de políticas econômicas internas, em cada país, nas áreas de propriedade intelectual, compras governamentais, defesa comercial, investimentos, em geral com dispositivos chamados de OMC – Plus, mais favoráveis aos Estados Unidos do que aqueles que conseguiram incluir na OMC, que, sob o manto de ilusória reciprocidade, beneficiam as megaempresas americanas, em especial neste momento de crise e de início da competição sino-americana na América Latina.

22. Na execução deste objetivo, de alinhar econômica, e por consequência politicamente, toda a América Latina sob a sua bandeira contam com o auxílio dos grupos internos de interesse em cada país que, tendo apoiado a ALCA no passado, agora apoiam a negociação de acordos bilaterais ou a aproximação com associações de países, tais como a Aliança do Pacífico, que reúne países sul-americanos e mais o México, que celebraram acordos de livre comércio com os EUA.

23. Hoje, o embate político, econômico e ideológico na América do Sul se trava entre os Estados Unidos da América, a maior potência econômica, política, militar, tecnológica, cultural e de mídia do mundo; a crescente presença chinesa, com suas investidas para garantir acesso a recursos naturais, ao suprimento de alimentos e de suas exportações de manufaturas e que, para isto, procuram seduzir os países da América do Sul e em especial do Mercosul com propostas de acordos de livre comércio; e as políticas dos países do Mercosul, Argentina, Brasil, Venezuela, Uruguai e Paraguai que ainda entretém aspirações de desenvolvimento soberano, pretendem atingir níveis de desenvolvimento social elevado e que sabem que, para alcançar estes objetivos, a ação do Estado, i.e. da coletividade organizada, é essencial, é indispensável.

FONTE: http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=20737