A Geopolítica do Sistema Imperial
José Luís Fiori
Saul Leblon: A engrenagem que mastiga governos e nações - introdução para o texto "A Geopolítica do Sistema Imperial"
Onde
estamos e para onde estamos indo? A pergunta intrínseca a qualquer
deslocamento humano ganha pertinência redobrada quando a neblina da
história parece embaralhar os pontos cardiais da política conduzindo
governos e projetos distintos ao mesmo desfecho: a rendição aos
mercados.
Por trás da tragédia grega, mas também a do PT e a de
Dilma no Brasil, movem-se forças e interesses que refletem a
reacomodação de um poder global mais geral, a distinguir o método, a
virulência e a hierarquia de dominação dentro do capitalismo no século
XXI.
Qual a singularidade da dominação hoje aparentemente difusa
e sem núcleo, exceto o dos pregões que nunca dormem e o do olho ubíquo
dos monitores dos mercados, em sua diuturna vigília global?
Que posição ocupa o Brasil dentro dessa roleta planetária?
Em
que medida a interação de sua elite com essa mecânica mudou a natureza
da luta pelo desenvolvimento e pela democracia entre nós, tornando
anacrônicas, caducas algumas bandeiras e alianças propostas pela
esquerda?
São perguntas obrigatórias no momento em que, mais que
a sorte da nação e a do desenvolvimento, a formação virtuosa da
infância, os valores e compromissos que distinguem uma democracia social
de um mero ajuntamento demográfico, há muito deixaram de interessar à
elite brasileira.
A expressão ‘vale tudo’ descreve com
fidelidade o que tem sido e será, cada vez mais, o bombardeio para
convencer o imaginário social das virtudes intrínsecas à troca do
‘populismo estatizante’, pela estado de exceção de direitos e conquistas
sociais permanente.
Aquilo que se fez com a Grécia agora, processa-se em câmera lenta no Brasil.
Quem
vê no capitalismo apenas um sistema econômico, e não a dominação
política intrínseca à sua encarnação financeira atual, subestima
erroneamente a dominância global por trás da encruzilhada da luta pelo
desenvolvimento em nosso tempo.
Ademais dos percalços
macroeconômicos --reais e desafiadores-- foi a tentativa petista de
deslocar o capital parasitário para a produção no 1º mandato Dilma –
reduzindo os juros reais a 3,3%, o menor patamar da história, contra
18,5% sob FHC e 11,7% com Lula-- que acendeu o estopim de um confronto,
ora em fase explícita de agendamento golpista.
Interesses que
tomaram gosto pelo vício de ganhar sem agregar riqueza ao bem comum,
detém hoje uma hegemonia planetária, que se perpetua através de
mecanismos de valorização do capital fictício, cuja escalada depende de
mercados desimpedidos de qualquer maçaneta protecionistas e Bancos
Centrais complacentes às exigências de elevada remuneração e baixa
regulação dos fluxos de capitais.
Ao contrário do que aconteceu no caso das cadeias industriais, o Brasil atingiu o estado das artes nessa matéria.
A
coagulação rentista de uma elite perfeitamente integrada aos circuitos
da alta finança, amesquinhou a democracia brasileira, privando-a de
instrumentos para dar à riqueza a sua finalidade social.
A regressividade inerente a esse processo está promovendo uma mutação acelerada nas relações sociais, aqui e no resto do mundo.
O
locaute do capital diante das necessidades de investimento do país
–repita-se, ademais dos entraves macroeconômicos– é o sintoma desse
esgarçamento profundo entre os detentores da riqueza e o destino
coletivo da sociedade.
A greve do capital contra a ‘Dilma
intervencionista’ começou aí quando a taxa de juro real foi comprimida,
sem que se tenha providenciado a musculatura política necessária para
enfrentar interesses descomunais situados do outro lado da pista.
Sem
o discernimento engajado da sociedade para enfrentar a riqueza que não
reparte, a façanha está fadada a tropeçar na assimetria das forças em
confronto.
A Grécia acaba de aprender, da forma mais dura
possível, que não basta sequer legitimar uma demanda justa através de um
plebiscito vitorioso.
À falta de um amortecedor propiciado
pela expansão do comercio internacional, por exemplo, ou de uma ainda
inexistente aliança global de interesses populares e de instituições
correspondentes, como poderão vir a ser as dos Brics, dá-se o confronto
direto entre os interesses das sociedades e das nações e a virulenta
captura da sua riqueza pelo aspirador financeiro.
Não terá êxito
diante desse xadrez quem não se apetrechar de forma desassombrada para
enfrenta o embate que virá, inapelavelmente.
Uma primeira e
obrigatória providencia consiste em entender as estruturas globais e as
forças motrizes por trás desse enfrentamentos.
É disso que trata
o texto do professor José Luís Fiori, ‘A geopolítica do novo sistema
imperial’, cuja oportuna releitura Carta Maior recomenda neste fim de
semana.
A GEOPOLÍTICA DO NOVO SISTEMA IMPERIAL
JOSÉ LUÍS FIORI
A
História conta que os estados nacionais e o moderno sistema econômico e
político mundial nasceram praticamente juntos, nos século XV e XVI.
Ou
mais precisamente, nos conta que o próprio sistema mundial foi uma
construção e um produto da expansão extraterritorial dos primeiros
estados nacionais europeus.
Depois de nascer, esse sistema
mundial se manteve, nos 500 anos seguintes, sob égide política européia
e do seu sistema inter-estatal.
Mas não é verdade que neste
período o Estado Nacional tenha destruído ou substituído todas as demais
formas de organização do poder territorial, e sobretudo os Impérios,
como pensam Paul Kennedy e Charles Tilly, entre outros.
É
verdade que os primeiros estados europeus nasceram da luta contra o
império muçulmano e da resistência ao império dos Habsburgos. Mas todos
estes estados também se transformaram depois, por um caminho ou outro,
em Impérios, dentro ou fora da Europa.
Impérios que duraram
muito, aliás, e que só foram desmontados na segunda metade do século XX.
Por isto, o mais correto é dizer que o império, ou a "vontade
imperial", foi sempre uma dimensão essencial dos próprios estados
nacionais europeus, e que foi esta vontade a grande responsável pelo
nascimento do sistema político mundial hierarquizado a partir de um
nucleo central composto pelas grandes potências.
Mas este núcleo central nunca foi homogêneo, coeso ou pacífico, pelo contrário, viveu em estado de quase permanente guerra.
Exatamente
porque todos seus estados eram ao mesmo tempo impérios, e sempre se
propuseram construir um império mundial. Por isto foram chamados de
grandes potências ou potências globais, complementares e competitivas
entre si.
Como dissemos num livro recente: " o que a história
moderna nos ensina é que os conflitos político-militares dentro deste
núcleo do sistema mundial foram sempre provocadas por uma ‘vontade
imperial’ que consegue se impor, aos demais estados, durante um certo
período da história, e que a partir daí tentou construir o seu império
global.
Mas o que a história também ensina é que estes projetos
nunca conseguiram se completar. Em todos os casos, o impulso imperial
dos poderes políticos e econômicos dominantes, acabaram sendo barrados
por outras ‘vocações’, iguais e contrárias. E foi a existência
simultânea destas várias vocações iguais e contrárias que produziu, em
alguns momentos da história, situações de ‘equilíbrio de poder’, e em
outros momentos, as grandes guerras mundiais entre os
estados-potências".
Mas mesmo nos períodos de "equilíbrio de
poder", o que de fato existiu foi sempre uma competição bipolar central
que acabou contendo o caos europeu e exportando, muitas vezes, as
guerras para fora da Europa.
Foi o que se passou, por exemplo,
com a bipolaridade ibérica nos séculos XV e XVI; e com a competição
entre a Holanda e a União Ibérica, nos séculos XVI e XVII. Logo antes do
início da longa disputa secular entre a França e a Inglaterra.
Uma
complementariedade e conflito político-militar que, como nos ensinou
Max Weber, foi absolutamente decisiva para o desenvolvimento e a
acumulação da riqueza capitalista das grandes potências européias.
O
mesmo quadro e as mesmas regras que se mantiveram no século XX,
enquanto o sistema mundial foi gerido pela bipolaridade competitiva
entre Estados Unidos e União Soviética.
O desaparecimento desta
bipolaridade, em 1991, somada à "eutanásia" dos estados europeus que
criaram o próprio sistema e suas regras de funcionamento, deu uma
impressão inicial de que chegara enfim a hora do Império Mundial, um
novo tipo de império sem fronteiras, sem estados e sem um centro de
poder com base nacional.
Do nosso ponto de vista, entretanto, o
centro de poder deste novo projeto imperial responde ainda pelo nome de
Estados Unidos da América.
Como já dissemos noutro lugar, "o
espaço deste novo tipo de Império Americano não é contínuo nem
homogêneo. Seu poder apoia-se no controle de estruturas transnacionais,
militares, financeiras, produtivas e ideológicas de alcance global, mas
não suprime os estados nacionais, nem a hierarquia do sistema
inter-estatal.
Reconhece a existência de estados, que são seus
adversários estratégicos, e exerce seu poder de maneira diferenciada,
com relação aos demais: vassalagem, no caso de alguns países do leste
asiático e do oriente médio; hegemonia, no caso dos seus aliados
europeus.
Só na América Latina, o poder imperial americano é
exercido sobre um território contínuo, incluindo todos os seus estados,
com a exceção de Cuba."
O que passou foi que nos anos 90, a
vitória na Guerra Fria, somada ao seu sucesso econômico, permitiu aos
Estados Unidos proporem aos seus principais aliados e ao mundo em geral
um projeto de integração e coordenação global das principais potências e
economias nacionais, que se chamou de globalização e que dava a
impressão que estivéssemos ingressando numa nova era, sob a tutela de um
império mundial benevolente.
Foi o tempo em que muitos sonharam com a abundância fácil e rápida e com o fim dos conflitos e das soberanias nacionais.
Mas
este projeto já havia sido engavetado pela nova administração americana
empossada no início de 2001, quando ocorreram os atentados terroristas
que ajudaram a decantar a "Doutrina Bush": uma "estratégia de
contenção" de longo prazo, como foi a da Inglaterra com relação à França
e à Rússia, no século XIX; e a dos EUA, com relação à URSS, na Guerra
Fria.
Com a diferença que agora a contenção se refere a um
"inimigo invisível" e global, e os Estados Unidos se atribuem a
capacidade quase exclusiva de definir a sua localização e as suas
intenções, nos seus momentos de invisibilidade.
Uma estranha
"bipolaridade" mundial que delega aos Estados Unidos um direito sem
precedentes de repressão interna e de intervenção externa em todo e
qualquer território, estado ou sistema de fluxos onde ele localize ou
decida que existe o "virus do terrorismo".
Mas enganam-se
redondamente os que pensam que chegou ao fim o projeto neoliberal de
universalização dos mercados "auto-regulados".
Desde Hiroshima e
Nagasaki, os Estados Unidos nunca tiveram receio de explicitar, nos
momentos de crise, que: os mercados e as finanças globais só são
possíveis, porque existe o poder político do Príncipe capaz de impor ao
mundo a sua ordem e a sua moeda.
Foi o que aconteceu em 1973,
quando os Estados Unidos se desfizeram do padrão ouro-dólar, instituído
em Bretton Woods, dando lugar a um novo sistema monetário internacional
sem referência metálica, baseado no dólar e na "credibilidade" do poder
global americano.
Agora, no Afeganistão, os Estados Unidos
reafirmaram a superioridade avassaladora de suas armas e a capacidade
de sustentar sua vontade e seus valores através do mundo.
A
vitória inicial da ofensiva americana, e a destruição exemplar do regime
talibã, recolocou o estado e as armas no epicentro do sistema mundial,
mas não engavetou o projeto liberal da globalização, apenas deixou
claro para os mais cegos ou iludidos, a dimensão política, imperial e
nacional deste projeto.
Por outro lado, do ponto de vista
estritamente geopolítico, o consenso que foi construído em torno do
combate ao terrorismo é excessivamente universal para ser eficaz.
Além
disto, não é difícil de perceber a relocalização russa e o renascimento
militar da Alemanha e do Japão, enquanto se dilata a importância
político-estratégica da China e Índia – as economias que mais crescem no
mundo, apesar da recessão mundial.
Assim mesmo, o mais
provável é que por muito tempo, não ocorram conflitos militares diretos
entre as grandes potências enquanto se dê a lenta construção de uma
nova bipolaridade política capaz de equilibrar o funcionamento do
sistema mundial.
Neste processo deverá pesar decisivamente a estranha troca de cadeiras que está ocorrendo entre a Europa e a Ásia.
Enquanto
a Europa tenta se desfazer do modelo responsável pelo seu sucesso
nestes 500 anos, a Ásia finalmente se transformou num sistema
inter-estatal complementar e competitivo, igual ao que a Europa está
desmontando.
De qualquer maneira, durante este período de lenta
transformação do núcleo central, o mais provável é que ocorra uma
exportação dos conflitos para a periferia do sistema, como no século
XIX.
Por isto, a importância - para quem queira entender a
geopolítica do novo sistema imperial emergente - de olhar o que está
ocorrendo no Afeganistão e na Argentina. Do nosso ponto de vista, existe
no momento um mesmo impasse escondido por trás das duas crises, tão
distantes no espaço e no tempo. E este impasse se deve, em grande
medida, à inexistência de consenso dentro do governo norte-americano, e
entre as grandes potências, sobre como prosseguir a "guerra" contra o
terrorismo, depois da destruição do regime talebã, no Afeganistão; e
como fazer a Argentina pagar suas dívidas.
Alguns defendem a
continuação da ofensiva militar, com ataques sucessivos ao Iraque, Iêmen
ou ao próprio Irã, e todos parecem estar de acordo que o governo
argentino tem que honrar seus contratos e se manter nos trilhos da
ortodoxia liberal.
Mas muitos temem os efeitos em cadeia da
expansão da guerra na Ásia Central, e uma situação de caos social que
leve à ruptura do sistema político argentino.
Para não falar que a moratória latino-americana trouxe prejuízos desiguais, para os capitais europeus e norte-americanos.
Por
trás deste dissenso sobre a condução imediata das duas crises
esconde-se, entretanto, um problema mais grave e de longo alcance, que
em geral não é mencionado pelos analistas e estrategistas
internacionais.
No fim da Guerra Fria e durante a década de
1990, falou-se muito sobre as novas relações entre as grandes potências,
depois do desaparecimento da União Soviética, da consolidação da União
Européia e da ascensão econômica e política asiática.
Neste
período, contudo, o crescimento econômico americano e a globalização do
capital financeiro mantiveram a crença numa coincidência de interesses
entre os países desenvolvidos e o resto do mundo.
A volta da
recessão mundial , em 2001, a intensificação dos conflitos militares na
periferia e as crises econômicas nos "mercados emergentes", trouxeram
para o primeiro plano uma questão muito antiga e permanente do moderno
sistema político e econômico mundial:
o que fazer ou como renovar suas velhas estruturas de dominação global, articuladas a partir da Europa desde o século XV?
o
que fazer neste novo milênio, com as antigas colônias e com os estados
que foram inventados pelos europeus, na América, na Oriente Médio, na
Ásia e na África?
Como manter a "ordem" e como administrar as
crises e as moratórias nacionais que deverão se multiplicar na periferia
do sistema? como dividir entre as grandes potências os custos imediatos
e as tarefas futuras? quem assume a responsabilidade pelo quê, e onde?
Entre
1940 e 1990, o fim dos impérios europeus e a descolonização da África e
da Ásia deram origem a cerca de 100 novos estados nacionais
independentes.
Em 2001, dos 188 estados membros das Nações
Unidas, 125 haviam sido, em algum momento, colônias européias que se
independizaram de forma concentrada, em duas grandes ondas: a primeira
delas no início do século XIX, na América, e esta segunda, depois da II
Guerra Mundial, na África e na Ásia. Curtos pedaços de uma história
muito longa, a própria história do sistema econômico e político mundial
que nasceu no século XV, como uma projeção "extra-territorial" do poder
europeu.
Seu primeiro passo foi dado por Portugal, ao tomar Ceuta dos mulçumanos, no norte da África, em 1415.
Menos
de um século depois, em 1494, os europeus já se consideravam no direito
de repartir o mundo, definindo, na cidadezinha de Tordesilhas, o que
foi de fato a primeira "ordem mundial européia". Depois vieram os
impérios marítimos asiáticos e a colonização americana, uma caminhada
que nunca mais se interrompeu.
Nos 500 anos seguintes, 8 países,
com apenas 1,6% do território global (Portugal, Espanha,Holanda,
França, Inglaterra, Bélgica, Alemanha e Itália) foram conquistando ou
submetendo praticamente todo o resto do mundo, através da conquista
militar e territorial, ou através do mercado e do poder dos seus
capitais.
Movimento expansivo - político e econômico - que
acompanha a história do desenvolvimento capitalista e que se transformou
numa dimensão constitutiva do sistema mundial moderno. Uma estrutura
hierárquica de dominação global, centrada na Europa - e depois, na sua
ex-colônia norte-americana - que assumiu várias formas através dos
séculos: colônias, domínios, províncias de além mar, mandatos,
protetorados etc.
Também neste caso se pode falar em duas
grandes ondas, só que ao contrário das outras, estas foram expansivas e
muito mais prolongadas: a primeira, que vai do século XV ao XVIII e é
interrompida pelas independências dos estados americanos que se
transformaram imediatamente em periferia econômica da Inglaterra (no
sentido que deu Raul Prebisch a esta palavra).
E a segunda, que
vai do século XIX ao XX, e coincide com o período da competição
imperialista européia, pelo controle da Ásia e da África.
Esta
segunda onda expansiva é que foi "debelada", depois da II Guerra
Mundial, mas o controle europeu (ou agora "ocidental”) do mundo se
manteve sob a tutela da competição global e bipolar entre a União
Soviética e os Estados Unidos, o verdadeiro cinturão de segurança que
manteve a "ordem" dentro desta galáxia de estados nacionais que nasceu
cinco séculos depois de Tordesilhas.
Immanuel Wallerstein
sublinha com razão, a importância que os Estados Unidos e a União
Soviética tiveram na descolonização do século XX, defendendo, desde a I
Guerra Mundial, o direito à auto-determinação dos povos.
Mas no
fim da II Guerra Mundial, as duas novas lideranças mundiais prometeram
para todos, o desenvolvimento econômico e uma maior igualdade social.
Em
1990, o fim da URSS enterrou a promessa comunista, mas isto ocorreu no
mesmo momento em que o mundo capitalista também declarava o fracasso de
sua promessa desenvolvimentista.
No seu lugar colocou a utopia globalitária da integração sem fronteiras e do crescimento convergente.
Uma
utopia que virou pó muito rapidamente, e hoje, na Ásia Central como na
América Latina só lhes restou às grandes potências, propor ao resto do
mundo, a sua velha defesa do livre-comércio, que já foi testada no
século XIX.
Neste ponto, pode ser útil um pequeno recuo no
tempo, sobretudo para quem queira especular, a esta altura de 2002,
sobre os futuros possíveis.
Voltar ao século XIX, para entender
como foi que a utopia do livre comércio acabou transformando - entre
1830 e 1940 - 3/5 do mundo em colônia européia.
Apesar da
diversidade das situações nacionais e das relações estabelecidas com a
América, Áfria e Asia, sobretudo depois da independência
norte-americana, é possível identificar, na Europa industrial do século
XIX, duas grandes posições frente ao problema do seu relacionamento
com o "resto do mundo".
De um lado, os que se alinharam com
Adam Smith e o Lord Shelbourne (que negociou a paz e a independencia com
os norte-americano) e que já defendiam, na segunda metade do século
XVIII, que as vantagens do livre comércio, para os países mais
desenvolvidos, dispensavam os monopólios coloniais e as conquistas
territoriais que haviam sido necessárias, nos séculos anteriores.
Estes
senhores apostaram, desde o primeiro momento, que a simples
superioridade econômica inglesa - acentuada pela Revolução Industrial -
seria capaz de promover a especialização "primário-exportadora" das
economias periferizadas, segundo as necessidades dos estados mais ricos e
poderosos.
"We prefer trade to dominion", diziam eles, e foi
esta idéia que sustentou a defesa inglesa das independências politicas
latino-americanas, acompanhadas pela assinatura simultânea dos Tratados
Comerciais que abriram os mercados locais aos produtos manufaturados, e
aos capitais financeiros europeus.
Numa posição oposta, se
colocaram quase todos os políticos e intelectuais conservadores que, na
segunda metade do século XIX, defenderam a expansão territorial e a
missão civilizatória dos europeus, através do mundo.
Foi o caso
de políticos como Disraeli e Palmerston, ou intelectuais como Spengler,
Dilthey e Scheller que pensavam como o principe-chanceler russo
Gortchakov, ou como Cecil Rhodes, que além de defender as conquistas
territoriais européias, foi o primeiro a sustentar a tese de que o
caminho da paz mundial deveria passar pela submissão do mundo às leis
anglo-saxônicas.
Na mesma hora em que o alemão Carl Peters
assumia, sem nenhum tipo de hipocrisia civilizatória, que "o objetivo da
colonização é enriquecer, sem escrúpulos e com decisão, nosso próprio
povo, às custas de outros povos mais fracos".
Se a posição
de Adam Smith predominou na primeira metade do século XIX, a de Cecil
Rhodes se impôs de forma avassaladora a partir de 1850. Mas o mais
interessante é que esta vitória não se deu no campo político-
partidário, nem tampouco no campo das idéias, se deu como resultado
muitas vezes inesperado da conjunção, no mundo real, do livre-comércio
com a competição entre as grandes potenciais decididas a apoiar seus
capitais nacionais, e impedir o avanço territorial dos seus rivais.
Esta
história se repetiu muitas vezes e por todos lados, reproduzindo o
modelo testado na América Latina, e que se transformou num princípio
geral da política externa européia.
Tudo começava pela
assinatura (muitas vezes imposta pela força) de Tratados Comerciais que
obrigavam os países signatários a eliminarem suas barreiras comerciais,
permitindo o livre acesso das mercadorias e dos capitais europeus. Esses
Tratados foram estabelecidos com o Império Otomano, em 1838, e depois
com a China, o Japão, o Egito, a Tunísia, o Marrocos, o Afeganistão, o
Iraque e vários outros países que acabaram se especializando na
exportação de matérias primas necessárias à industrialização européia.
A
nova situação obrigou, também, os governos destes países a se
endividarem junto a banca privada, sobretudo inglesa e francesa, devido à
perda de arrecadação com o fim das tarifas comerciais, e ao seu
envolvimento na construção da infra-estrutural indispensável às
exportações.
Nos momentos de retração cíclica das economias
européias, estes países enfrentaram, invariavelmente, problemas de
balanço de pagamentos, sendo obrigados a renegociar suas dívidas
externas ou declarar moratórias nacionais.
No caso da América
Latina, as dívidas e moratórias foram solucionadas através de
renegociações com os credores e transferências dos custos para as
populações nacionais.
No resto do mundo, a história foi
diferente: primeiro foram criados, pelos credores, os Comitês de
Administração das Dívidas Publicas, que assumiam a tutela fiscal e
financeira dos países endividados.
Foi o que aconteceu na
Tunísia em 1869, no Egito em 1880; no Império Otomano em 1881 e assim
sucessivamente em quase todos os países que haviam assinado os famosos
"tratados desiguais". Quando assim mesmo o problema se manteve ou se
agravou, a solução foi a tomada direta do poder pelos estados europeus
mais atingidos pelas situações de inadimplência.
Nessa
história, o Egito foi um caso paradigmático, no curto período em que
viveu o sonho modernizante do Quediva Ismael Paxá - entre 1867 e 1883 -
sustentado pelos capitais franceses e ingleses que financiaram suas
plantações de algodão, e a construção de suas ferrovias e do Canal de
Suez.
Em 1876, os financistas, os intelectuais cosmopolitas e a
alta sociedade européia foram ao Egito comemorar, junto com as elites
locais, o sucesso da modernização do país e a inauguração da Ópera do
Cairo, ouvindo a première da Aída de Verdi, composta especialmente para a
ocasião.
Mas em 1878, o Egito já começou a enfrentar problemas sérios no seu balanço de pagamentos.
Em
1879, como conseqüência, o Quediva Ismael Paxá renunciou ao governo do
Egito. Em 1880, foi declarada a moratória nacional. Em 1881, foi criado
pelos credores, o Comitê de Administração da Dívida, que assumiu a
tutela do fisco e das finanças egípcias. Mas apesar disto, em 1882, as
tropas inglesas invadiram o Egito em nome dos credores, transformando o
país numa colônia, e depois num protetorado militar, que durou até 1952.
A
grande diferença, até agora, no início do ano 2002, é que em 1880, já
havia consenso entre as grandes potências sobre o que fazer: elas já
haviam deixado de lado a utopia de Adam Smith e haviam se decidido
seguir - em defesa do livre-comércio - o caminho proposto por Cecil
Rhodes, personagem símbolo do expansionismo territorial e do
imperialismo europeu.
Fevereiro de 2002
Fonte: Carta Maior, 19/07/2015