CC: Quais são os elementos principais da geopolítica nos dias atuais?
RF: A
geopolítica no século 19 visava, basicamente, garantir as rotas navais,
por serem o meio de expansão comercial no globo. Na primeira década do
século 20, o geógrafo Halford Mackinder, na Inglaterra, e depois o
estrategista Nicholas J. Spykman, nos Estados Unidos, perceberam que o
poder naval não era mais suficiente.
O desenvolvimento do transporte terrestre, especialmente das
ferrovias, podia se tornar uma base de poder muito grande, por permitir o
transporte de tropas e armamentos mais rápido que os navios.
E isso se tornava particularmente grave porque, face a possibilidade
de integrar Ásia e Europa, fatalmente Grã-Bretanha, Estados Unidos e
outros países seriam empurrados para a margem do sistema global. Juntar
Ásia com Europa resulta na maior massa de terra, recursos e população do
planeta, a chamada Eurásia.
Daí porque toda a estratégia dos Estados Unidos no pós-guerra seria
exatamente conter qualquer poder que busque integrar Ásia e Europa. A
sabedoria da China, carente em energia, foi usá-la para se expandir
CC: Qual a importância da China nesse contexto?
RF: É crucial porque, ao contrário dos demais
estados e forças políticas, não busca integrar Ásia e Europa
politicamente, mas economicamente, através das famosas rotas da seda,
eixos de infraestrutura de comunicação, transporte e, principalmente,
energia. Há uma série de desdobramentos extremamente importantes. O
primeiro tem a ver com a Rússia, essencial no projeto chinês de integrar
Ásia e Europa. Decorre daí a escalada de tensão entre a Otan e a
Rússia. Sem o apoio desse país, não é possível fazer aquela integração,
por causa da posição geoestratégica que a Rússia desfruta nessa união.
Na América do Sul, os investimentos chineses buscam integrar os países à
rede de interesses em construção para a Ásia e a Europa, com a mesma
estratégia. Investe-se em energia, transporte, inclusive há o projeto da
estrada de ferro proposta pela China para ligar o Brasil ao Pacífico.
CC: Por que a integração de Ásia e Europa através da China é tão importante?
RF:
A maior massa de terra é a junção de Europa e Ásia. Para controlar a
Eurásia, é preciso dominar o seu centro, a Ásia Central. Quem fizer
isso, controlará o planeta. Essa é a visão de Mackinder. Grã-Bretanha e,
de certa forma, Estados Unidos têm uma preocupação muito grande em
impedir que outro poder político domine a Ásia Central.
Entretanto, todas as tentativas nesse sentido fracassaram no século
20, por se tratar de um mosaico de culturas e povos que dificulta muito a
unificação política da região. O que os chineses estão fazendo agora?
Não estão unificando politicamente, mas economicamente. Eles constroem,
neste momento, uma monumental infraestrutura de transporte e
telecomunicações para ligar a China à Europa, passando pela Ásia
Central. Com isso, a energia se transformou num instrumento para
controlar aquilo que Mackinder considerou o centro da política no
tabuleiro internacional.
A grande percepção da China foi transformar aquilo que em princípio
seria uma debilidade da sua estratégia de potência, que é o fato de não
dispor de fontes de energia, em um instrumento para unificar e projetar o
seu poder economicamente sobre o centro do tabuleiro da Eurásia, com a
ajuda inestimável e muito bem-vinda da Rússia. O Brasil se vê distante
da guerra geopolítica, mas está no seu centro
CC: Como o Brasil se posiciona no jogo geopolítico?
RF:
Essa é uma questão extremamente difícil, porque a inserção do País é
muito problemática. O movimento da China para controlar o centro da
Eurásia economicamente, inclusive importando energia, não é observado
por Estados Unidos, União Europeia e Japão de forma tranquila. Ao
contrário, determina um aguçamento do conflito, como se observa na
Ucrânia, na Macedônia, na Síria, reflexos do esforço das chamadas
potências ocidentais para afastar a possibilidade de unidade entre Ásia e
Europa mediada pela China. São conflitos em torno da área de influência
de Rússia e China.
É importante entender que a parceria entre Rússia e China não é
apenas uma questão de conveniência de dois países que se sentem
ameaçados. Ela é geoestratégica, porque a condição necessária para os
chineses alcançarem a Europa de modo eficaz é o apoio da Rússia,
influente na Europa Central. Do mesmo modo que o respaldo da China é
indispensável para a Rússia enfrentar a Otan.
Desde o ano passado, uma ferrovia une Yiwu, próxima a Xangai, a
Madri, na Espanha, para transporte de carga em tempo muito inferior ao
dos navios. Esse é o pesadelo dos países que perderiam poder em escala
global se essa articulação realmente acontecer. O Brasil está exatamente
no meio desse conflito entre Estados Unidos e seus aliados e China e
Rússia e seus aliados.
CC: Por que?
RF: Porque a questão não é apenas garantir oferta de
energia para a capacidade de um país projetar poder, é principalmente
negar ao outro que o confronta o acesso a essas fontes de energia.
E nós temos não só grandes reservas no pré-sal como uma empresa
brasileira com capacidade de explorar essas reservas, o que nos dá uma
notável autonomia para aproveitar esse recurso, e essa empresa se
encontra associada às empresas chinesas de petróleo CNOOC e CNPC.
Portanto estamos inseridos num espaço tradicionalmente de influência
norte-americana, com uma empresa com capacidade tecnológica de explorar o
pré-sal, associada a uma empresa chinesa. Estamos exatamente, digamos
assim, na linha de confronto. A situação é agravada ainda mais pelo fato
de termos um projeto de submarino nuclear com capacidade de fechar o
corredor do Atlântico, por ser muito mais rápido que o convencional.
Há uma crença generalizada no País de que nós estamos fora desse
confronto entre Oriente e Ocidente. Devido às reservas energéticas e as
matérias-primas que temos, estamos diretamente na linha de frente desse
conflito.
A posição oposta, de que isso tudo não nos diz respeito por estar
muito longe, é profundamente equivocada e pode ter consequências
gravíssimas. E isso me preocupa muito porque eu não vejo por parte dos
políticos, das lideranças políticas, e mesmo da maior parte dos
intelectuais brasileiros, a percepção desse quadro. Não temos uma
liderança extremamente hábil como foi Getúlio Vargas
CC: Seria melhor fazer parceria com a China ou os Estados Unidos?
RF: Examinada de perto, nenhuma das duas parcerias
atende, neste momento, às necessidades do Brasil. O modelo chinês de
desenvolvimento é muito parecido com o padrão britânico do século 19, no
sentido de que a China consome matérias primas e exporta produtos
industrializados e nós exportamos matérias-primas e importamos
manufaturados chineses.
Segundo especialistas em comércio exterior, a economia brasileira
tem-se tornado progressivamente competidora com a economia
norte-americana, por exemplo em soja e automóveis. Fazer exportações
significativas desses produtos aos EUA parece pouco provável, pois eles
são grandes produtores. Não há, portanto, uma relação de
complementaridade. Um alinhamento automático, quer a um lado, quer a
outro, provocaria danos irreversíveis na economia nacional.
CC: O que o Brasil deveria fazer nesse contexto?
RF:
Falta ao País a formulação de uma estratégia frente a esse confronto
geopolítico global. Não percebo, entretanto, em nenhuma força política, a
formulação dessa estratégia.
CC: O contexto político-econômico do País é uma complicação adicional.
RF:
O sistema político do País está se desintegrando e não há nenhuma
preocupação em preservar as organizações e instituições. A partir daí, o
que vai acontecer é absolutamente imprevisível.
CC: No período de Getúlio Vargas, o País soube tomar partido do conflito que opunha as forças aliadas e o chamado eixo.
RF: Exatamente.
Entre os anos 1930 e hoje, claro que são situações historicamente muito
diferentes, mas há um traço comum: tanto naquele momento como agora, o
mundo vivia um confronto geopolítico. Só que naquele período tivemos uma
liderança extremamente habilidosa, que era o Getúlio Vargas (nota da
redação: na Segunda Guerra Mundial, Vargas ameaçou aliar-se ao Eixo
Alemanha-Japão-Itália e com isso obteve dos Estados Unidos, através do
Eximbank, financiamento para construir a Usina de Volta Redonda,
fundamental para a constituição da indústria no Brasil).
Hoje, nós não temos uma liderança semelhante. Como é que o País fica?
Ao invés de se pensar uma estratégia, há uma captura das elites
políticas no Brasil por esse confronto geopolítico. Há uma polarização
antiamericanismo versus alinhamento automático com os Estados Unidos,
evidência de que ocorreu uma captura dos agentes pela própria dinâmica
do confronto geopolítico. É extremamente preocupante por serem duas
saídas muito simplistas.
Na verdade, o Brasil não pode prescindir nem dos Estados Unidos, dada
a posição que esse país ocupa no continente e o fato de ainda ser a
maior potência global, nem da China, que hoje, de certa forma, sustenta o
comércio exterior brasileiro. É preocupante não se discutir
alternativas. Há uma captura pela mesma dinâmica de polarização do
confronto global. Assim vai ser difícil conferir à economia brasileira o
dinamismo necessário para sustentar cerca de 200 milhões de habitantes.
A nossa afinidade está muito mais na África do que na América andina.
CC: Como o senhor vê esse movimento
do Ministério das Relações Exteriores que pode resultar no fechamento
de representações na África?
RF: Alguns dizem que o Brasil é o país mais
ocidental da África, em tom crítico. Não vejo necessariamente como
crítica ou elogio. Houve uma dinâmica muito forte de expansão de
representações brasileiras na África com base em um desejo de ampliar a
participação e a credibilidade do País no cenário global, torná-lo um
player efetivo nas relações internacionais. No quadro de confronto
geopolítico mencionado, essa perspectiva não é errada, mas precisa ser
situada em um contexto.
Hoje a economia brasileira não encontra solução no alinhamento
automático em nenhum dos dois lados do confronto global e é necessário
estabelecer vínculos comerciais com países que são também uma
alternativa para o avanço da nossa economia. Essas representações devem
ser avaliadas da perspectiva daquilo que a relação entre os países pode
gerar para dinamizar a economia brasileira. Visar simplesmente a
projeção do Brasil no cenário internacional, num clima de confronto, é
muito difícil.
CC: Qual é a relação entre geopolítica e a questão da energia?
RF:
Um dos enganos mais comuns é considerar a energia como uma questão
isolada. Energia, ao menos desde o início do século 20, é uma questão
geopolítica. Pensá-la isoladamente como um problema em si leva a não
perceber que a questão energética sempre estará inserida num contexto
geopolítico e será determinada por injunções geopolíticas, ainda mais no
momento atual.
CC: Como ficam a América Latina e a África no conflito geopolítico descrito?
RF:
Essa é uma pergunta que também me obriga a ir contra a crença geral.
Muito da geopolítica brasileira foi pensada numa espécie de extrapolação
do Tratado de Tordesilhas. Como nós empurramos a linha de Tordesilhas
para o Oeste, o destino brasileiro seria os Andes, seria chegar no
Pacífico. É possível ver uma retomada disso naquele projeto mencionado
de ferrovia ligando o Brasil ao Pacífico e chegando no Peru, que os
chineses estão propondo. Mas é importante ter uma outra dimensão, que é
social e cultural, da geopolítica.
Na verdade, nós temos profundas, fortes e muito sólidas raízes
africanas. A nossa afinidade está muito mais na África do que na América
andina. Na verdade, nós temos que nos orgulhar disso, porque a nossa
afinidade está na África, a nossa facilidade de diálogo está na África.
Então, novamente, as potências que estabelecerem uma aliança com o
Brasil terão um pé na África.
Daí vem também uma outra dimensão que não tem necessariamente a ver
com energia, tem mais a ver com história e geografia, da nossa
importância geopolítica nesse conflito, que é o fato que o Brasil é uma
ponte para a África.
Portanto controlando este lado do tabuleiro, você cria afinidades com
outro lado do tabuleiro também. Ajuda nesse movimento. Além, é claro,
de você controlar o Atlântico Sul.
CC: Todos esses fatores, conclui-se da sua análise, tornam a questão energética uma arma geopolítica.
RF: E
é por isso que hoje pensar a questão energética do País como um
problema única e exclusivamente econômico, como um problema de ‘como
fica o custo de extração do pré-sal com a manipulação de preços dos
sauditas’, é pensar de uma forma totalmente errada. Até porque, como os
sauditas estão mostrando, energia sempre foi e sempre será, uma arma de
luta política e geopolítica.
O que mais me preocupa neste momento é que não parece existir, nem
das lideranças políticas nem na intelectualidade de uma forma geral, a
percepção da gravidade do posicionamento brasileiro nesse conflito
geopolítico internacional. Não adianta o domínio do pré-sal se não
houver uma estratégia definida a partir da percepção desse contexto.