Outras Palavras
11/04/2012
BRICS: a possível virada em Délhi
Na Índia, mídia internacional finalmente percebeu: bicentenária hegemonia do Ocidente está sendo desafiada por mundo novo e cada vez mais interdependente
Por Prem Shankar Jha*
Tradução: Tadeu Breda
http://www.outraspalavras.net/2012/04/11/brics-a-possivel-virada-em-delhi/
11/04/2012
BRICS: a possível virada em Délhi
Na Índia, mídia internacional finalmente percebeu: bicentenária hegemonia do Ocidente está sendo desafiada por mundo novo e cada vez mais interdependente
Por Prem Shankar Jha*
Tradução: Tadeu Breda
A Índia hospeda uma série de conferências internacionais todos os
anos, e 90% delas não consegue nem mesmo ser citada pela imprensa
internacional. Mas a cúpula dos BRICS, concluída em 29 de março, rompeu
com essa tradição. Em apenas dois dias, a conferência virou notícia em
pelo menos 624 jornais de grande circulação e canais de tevê em todo o
mundo. O que possibilitou tamanha repercussão? A resposta mais curta é
que, talvez, a mídia internacional tenha sentido que a bicentenária
hegemonia do Ocidente está sendo desafiada por um mundo novo e cada vez
mais interdependente.
Esse desafio ao poderio ocidental (e norte-americano, em particular)
foi construído ao longo do tempo: está refletido na crescente
determinação da China em manter os mares ao sul de seu território livres
da presença militar e da influência econômica estrangeiras; é visível
já há alguns anos na atuação do grupo islâmico radical Al Qaeda; foi
demonstrado pelos vetos russo e chinês às resoluções do Conselho de
Segurança que buscavam legitimar a queda do regime de Bassar Assad na
Síria. Nesse contexto, o encontro dos BRICS — grupo formado por Brasil,
Rússia, Índia, China e África do Sul — em Nova Délhi adquire especial
relevância.
Apenas três dias antes da cúpula, um colunista do International
Herald Tribune classificou os BRICS como “um bloco artificial construído
em cima de um slogan”. Diferente da OTAN (Organização do Tratado do
Atlântico Norte), da Associação de Nações do Sudeste Asiático (ASEAN) e
de outras agrupações, afirmou o articulista, não existe justificação
regional ou comercial para os BRICS. Pelo contrário, todos os seus
membros possuem relações econômicas prioritárias com o Ocidente. Além
disso, a sigla que dá nome ao grupo foi inventado por um executivo da
Goldman Sachs, cujo objetivo era aconselhar corporações transnacionais
sobre a melhor forma de expandir suas atividades nas regiões que estavam
em rápido crescimento após o início da globalização e da gradual
desindustrialização do Ocidente.
Mais que uma sigla
Hoje, porém, os BRICS se transformaram em algo que vai muito além de
sua sigla. A declaração de Délhi contém não apenas a mais abrangente
crítica que jamais foi feita aos fracassos do Ocidente desde o final da
Guerra Fria, como também traz esboços de um projeto alternativo para
gerenciar um mundo cada vez mais interdependente — ou seja, o nosso.
A tarefa de elaborar esse plano B foi imposta aos BRICS pelas falhas
do Ocidente. Tanto a crise financeira de 2008 como a recessão mundial
iniciada em 2009 foram produtos da ganância e do desgoverno capitalista,
que reinaram soberanos enquanto sucessivos países se esforçavam para
desregulamentar todos os mercados, nacionais e internacionais, em nome
da liberdade econômica e da produtividade. Só o que conseguiram foi
transformar o mercado num terreno de caça para predadores econômicos.
Não devemos surpreender-nos, portanto, com as primeiras exigências
dos BRICS, feitas lá atrás, em junho de 2009: todas se relacionavam à
reforma das instituições financeiras internacionais, à uma
reestruturação do sistema financeiro, à segurança energética, à mudança
climática e ao comércio. E o tom era de cooperação: o objetivo dos BRICS
— seus presidentes apressaram-se em dizer — era “expandir o consenso
estratégico, consolidar a confiança mútua, coordenar-se entre si para
enfrentar a crise” e traçar um plano para o desenvolvimento futuro do
sistema econômico internacional.
Mas, na medida em que o caos financeiro se aprofundou e se espalhou
para a política, os BRICS foram forçados a ampliar sua agenda e afinar o
tom de suas declarações. A atuação do grupo deixou de ser
exclusivamente econômica durante a terceira cúpula de chefes de Estado,
realizada em Hainan, China, em abril de 2011, quando os BRICS
expressaram “profunda preocupação com a turbulência no Oriente Médio” e
prometeram “continuar com a cooperação na Líbia dentro do Conselho de
Segurança.”
Mas a OTAN não quis aprender as lições da Líbia e ignorou um fato
importante: a remoção forçada de um regime autoritário não é um caminho
indolor rumo à liberdade, democracia e paz, mas conduz a um vazio de
poder que, inevitavelmente, acaba sendo preenchido pelos elementos mais
brutais e preconceituosos da sociedade. A OTAN saiu da Líbia com a
crença de que finalmente havia descoberto uma “nova forma de guerra”,
que cumpriiu o objetivo de mudar o governo de um país de forma barata e
acessível — mesmo para potências economicamente falidas. Assim, a Líbia
foi seguida pela Síria, e Síria está em perigo de ser seguida pelo Irã.
É essa perspectiva profundamente perturbadora do caos e da guerra em
franca expansão que deu ao BRICS a possibilidade de desafiar a hegemonia
do Ocidente de uma maneira tão madura como a que foi revelada em Délhi.
Uma crítica
A declaração Délhi expressa este desafio mais claramente em seis de
seus 50 parágrafos. O primeiro é uma crítica à má gestão monetária da
Europa — e, por consequência, dos Estados Unidos —, que produziu dívidas
nacionais irresgatáveis, criou um excesso de liquidez internacional e
agravou a recessão global. O segundo oferece uma crítica igualmente dura
à inabilidade política do Ocidente em relação ao Oriente Médio. Um
terceiro parágrafo lembra aos EUA e à União Europeia que a paz no
Oriente Médio não poderá ser obtida sem uma “solução ampla e duradoura
do conflito árabe-israelense”, e afirma que os BRICS estão muito
interessados em ajudá-los na empreitada.
Um quarto parágrafo reafirma de forma inequívoca a necessidade de
respeitar a soberania, a independência e a integridade territorial de
todos os Estados, mas faz uma referência específica à Síria. Os BRICS
expressam “profunda preocupação [com o ataque à soberania da] Síria”,
conclamam a “um cessar-fogo imediato” e apoiam o plano de seis pontos
proposto pelo ex-secretário-geral da ONU, Kofi Annan: fim das
hostilidades e a instauração de “um processo político inclusivo e
liderado pelos sírios” para criar “um novo ambiente para a paz”.
A declaração de Déhli reserva sua observação mais incisiva para o
final: “A situação no Irã”, diz o texto, “não deve degenerar-se em
conflito. Reconhecemos o direito do Irã ao uso pacífico da energia
nuclear, em consonância com as suas obrigações internacionais, e
apoiamos a resolução das divergências por meio de instrumentos políticos
e diplomáticos e do diálogo entre as partes, incluindo entre a Agência
Internacional de Energia Atômica (AIEA) e o Irã, e em conformidade com
as disposições das determinações do Conselho de Segurança”. Tais
observações ficam apenas um pouco aquém de um aviso mal disfarçado.
Os parágrafos sobre a Síria e o Irã constitui a rejeição mais
inequívoca já feita à doutrina da “paz através do ataque preventivo”
formulada pelo governo George W. Bush na sequência do 11 de Setembro.
Desde então, sua aplicação repetitiva tem sido justificada não só pelo
combate ao terrorismo, mas também pela defesa dos direitos humanos, a
promoção da democracia e o exercício do “dever de proteger”. A verdade é
que, desde a libertação do Kosovo, em 1999, até a destruição da Líbia,
em 2011, temos assistido a uma sistemática violação do artigo 2º, a mais
fundamental cláusula da Carta das Nações Unidas. A declaração Délhi é
uma reafirmação de que os princípios consagrados pela ONU continuam
vigentes e, portanto, é também um alerta ao Ocidente contra o uso da ONU
e suas instituições — nomeadamente o Conselho de Segurança — para
destruir a própria ONU.
Mesmo as duas iniciativas concretas delineadas pelos BRICS (o
desenvolvimento de um sistema de pagamentos internacionais que dispense o
uso do dólar e a criação de um banco internacional alternativo) não
apenas possuem um objetivo econômico imediato, que é proteger suas
economias da instabilidade monetária, mas tem também a finalidade
política de libertar-se de um sistema bancário internacional que se
tornou ferramenta do Ocidente para impor sanções, sequestrar fundos e,
assim, estrangular e submeter países menores.
Resposta muda
Até agora, a resposta ocidental à declaração de Délhi permanece muda.
Robert Zoellick, presidente do Banco Mundial, e renomados economistas,
como Nicholas Stern, Matthia Romani e Joseph Stiglitz, saudaram a ideia
de um banco dos BRICS, observando sarcasticamente que tal instituição
“poderia desempenhar um forte papel no reequilíbrio da economia mundial,
canalizando o dinheiro duramente economizado pelos mercados emergentes e
países em desenvolvimento para finalidades mais produtivas do que as
bolhas de financiamento do mercado imobiliário dos países ricos”.
Porém, uma reação conservadora virá e, caso seja destacada pela
mídia, poderia facilmente transformar em ameaça aos EUA e à OTAN o que
hoje em dia não passa de um puxão de orelha nas potências hegemônicas do
Ocidente. É imperativo aos BRICS garantir — e ao mundo, perceber — que a
declaração de Délhi não é o começo de uma nova Guerra Fria.
A desorganização dos sistemas econômicos nacionais e internacionais
causada pela globalização espalhou-se, hoje, para o sistema político
mundial. Os BRICS encontraram sua raison d’etre na tentativa de deter que os malefícios se propaguem ainda mais. Não tem nada a ver com fazer tudo sozinho. Para citar Diena,
um jornal letão, “seria exagero dizer que esta aliança mais ou menos
informal é dirigida contra os Estados Unidos. Mas todos os países que
formam os BRICS estão convencidos de que querem viver um mundo
policêntrico, e não num planeta unipolar dominado pelos Estados Unidos.”
A Letônia é membro da União Europeia.
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Prem Shankar Jha é analista e jornalista indiano nascido em 1938. Já trabalhou para o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), além de vários veículos de comunicação da Índia. Foi também consultor do Banco Mundial, membro da comissão indiana da Unesco e professor-visitante da universidades de Harvard, Virginia e Richmond, nos Estados Unidos
Prem Shankar Jha é analista e jornalista indiano nascido em 1938. Já trabalhou para o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), além de vários veículos de comunicação da Índia. Foi também consultor do Banco Mundial, membro da comissão indiana da Unesco e professor-visitante da universidades de Harvard, Virginia e Richmond, nos Estados Unidos
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