Mundorama - Revista de Divulgação Científica em Relações Internacionais, 05/11/2015
Lucas Kerr Oliveira & Patrícia Freitas
A crise financeira de 2008-2009 foi
seguida de uma crise econômica estrutural que ainda impacta a maioria
dos países desenvolvidos, assim como muitos dos países emergentes e
periféricos. Contudo, assim como na década pós-Crise de 1929, a
consequência mais importante da atual crise econômica foi a abertura de
uma verdadeira “temporada de crises políticas e geopolíticas” em todo o
mundo. No nível local e regional nota-se grande diversidade de crises,
desde as que são marcadas por manifestações e protestos contra os
governos vigentes, até os casos de sangrentas guerras civis. No nível
global, é marcante o aumento da rivalidade entre as grandes potências,
especialmente entre as potências decadentes, progressivamente mais
agressivas, e as potências emergentes.
Uma série de disputas poderiam ser
consideradas como indicadores deste processo em pelo menos três grandes
cenários: (I) na Ásia Oriental, envolvendo as disputas marítimas e
estratégicas entre China e Japão, as crises na Península Coreana e no
Mar do Sul da China; (II) no Leste Europeu e ex-URSS, em que as tensões
envolvendo Rússia e OTAN tornaram-se críticas nas disputas entre Rússia e
Geórgia e, especialmente na atual guerra civil na Ucrânia; e (III) no
Grande Oriente Médio e Norte da África, com as crises iniciadas à partir
da Primavera Árabe, e incluindo intensas guerras civis como a da Líbia,
Síria e Iêmen.
No Norte da África, em contraposição à uma política anti-hegemônica adotada pelas potências emergentes nos últimos anos, potências tradicionais como a França aderiram a uma estratégia claramente neoimperialista, derrubando governos, ocupando e provocando guerras civis em países como Costa do Marfim, Mali, República Centro Africana e Líbia, apenas para defender os seus interesses econômicos mais básicos, como o acesso a petróleo e minérios. No Oriente Médio, observa-se a sobreposição de disputas regionais e globais, destacando-se, no nível regional a intensificação da disputa entre Irã e Arábia Saudita, torna-se patente nas guerras civis do Iêmen e da Síria, mesclando-se à polarização entre EUA e Rússia na região (KERR OLIVEIRA, PEREIRA BRITES & SILVA REIS, 2013).
O apoio direto da Rússia ao governo sírio, na “Guerra ao Terror” contra o ISIS, permitiu que os russos rapidamente conquistassem o domínio do espaço aéreo e atacassem com precisão centenas de alvos dos rebeldes extremistas, utilizando desde mísseis Kh-25 e Kh-29 guiados por laser e bombas KAB-500S-E guiadas pela rede de satélites de posicionamento Glonass, até mísseis de cruzeiro de longo alcance da classe Klub, lançados de 1500km de distância pela frota do Mar Cáspio.
Imagem: Ministério de Defesa da Rússia |
No âmbito das relações internacionais esta exibição de força por parte da Rússia em apoio aos seus aliados no Oriente Médio, pode ser considerado mais um indicador de que o Sistema Internacional está se tornando Multipolar. Semelhantemente, o Sistema Internacional continua estruturalmente anárquico, no sentido realista, mas organizado a partir de uma distribuição de poder hierárquica-oligárquica. Agrega-se a isto, o aprofundamento da crise da hegemonia até então estabelecida, que parece coerente com distintos modelos explicativos, como o dos ciclos acumulação de capital e dominação de Giovanni Arrighi, ou dos ciclos de transição de poder e guerras globais de Rasler & Thompson. Mas há também fortes indícios que a atual crise ou transição se manifesta principalmente na forma de uma crise da governança global, ampliando a instabilidade e a incerteza (QUEDI MARTINS, 2012). Destarte, a manutenção da anarquia no Sistema Internacional e a polarização entre as grandes potências, marcada por uma multipolaridade oligárquica e desequilibrada e uma conjuntura de crise de governança, reforçam o comportamento dos Estados em busca de segurança para sobreviver em um ambiente internacional competitivo e ameaçador.
Para o Brasil, estas são variáveis centrais para que o país possa estabelecer uma estratégia de inserção internacional de longo prazo que assegure a sobrevivência do país em um mundo progressivamente mais interdependente, integrado e competitivo, mas ainda mais instável e inseguro.
A atual crise política enfrentada pelo Brasil está diretamente ligada à crise econômica, impactando os principais setores produtivos nacionais que impulsionaram o robusto ciclo de crescimento dos anos 2000, a saber, energia e petróleo, construção civil e de infraestrutura, indústria naval, e, ainda, a indústria de defesa. Contudo, a gravidade com que a instabilidade global influencia a política e a economia do país pode impactar seriamente o conjunto destas indústrias, especialmente a última, que tem como principal cliente o Estado.
No longo prazo, a indústria de defesa é vital para o atual processo de modernização estratégico e das capacidades defensivas do Brasil, central para garantir a soberania e satisfatória capacidade defensiva de seu território nacional. Também é uma indústria essencial devido à capacidade de inovação tecnológica e científica, central para o desenvolvimento das demais forças produtivas industriais, apresentando impactos econômicos e sociais como geração direta e indireta de empregos de elevada qualificação e salários, mostrando-se imprescindível para que o país consiga retomar o desenvolvimento econômico. Mostra-se relevante, ainda, para viabilizar a consolidação de cadeias produtivas mais intensivas em tecnologia e mais integradas no âmbito regional, viabilizando a integração das indústrias de defesa da América do Sul. Portanto, é uma indústria essencial não apenas para assegurar a capacidade estratégica do país de exercer sua autonomia no ambiente internacional, mas também de compartilhar novos processos de desenvolvimento e integração com o bloco dos países sul-americanos.
Nos últimos anos a indústria de produtos
de segurança e defesa no Brasil passou a ter relevância cada vez mais
estratégica, resultando em considerável crescimento, particularmente no
período de governo Lula. De acordo com o estudo FIPE realizado em agosto
de 2015, entre 2009 e 2014, a indústria de defesa cresceu em média
9,44%. O mesmo estudo constata que nos últimos anos, cada real investido
em programas de defesa gerou um multiplicador de 9,8 vezes em valor do
PIB, sendo o segmento responsável por 3,7% do PIB do Brasil em 2014,
movimentando cerca de R$ 202 bilhões em 2014. Estes dados são ainda mais
significativos quando se considera que o Brasil tem investido apenas
US$ 31,74 bilhões ou seja, somente 1,4% do seu PIB em defesa (SIPRI,
2014). Contudo, o corte orçamentário no ano de 2015 poderá significar um
corte de mais 24,8% no valor da lei Orçamentária Anual, que já havia sido reduzido para R$ 22,6 bilhões, significando uma redução para R$ 17 bilhões de reais nesse ano.
A adoção de políticas como a inclusão da
defesa como um setor estratégico para o Programa de Aceleração de
Crescimento (PAC-2), foi uma medida fundamental para garantir recursos
para os Programas desenvolvidos pelas Forças Armadas, como o Satélite
Geoestacionário Brasileiro (SGDC), PROSUB, PROSUPER, o Sistema Astros
2020, SISFRON, além da aquisição dos caças Gripen NG e da fabricação da
aeronave construída no Brasil, o KC-390. Entretanto, a interrupção
desses investimentos e os cortes orçamentária podem trazer não somente
incerteza da continuação dos projetos em executados, como também
impactos imediatos na economia das empresas envolvidas nesses projetos.
Devido ao elevado risco tecnológico evolvido neste setor, existe não
apenas a ameaça de paralização dos principais projetos de modernização
de defesa, como o Sisfron e o Prosub, como, ainda, pior, o risco
catastrófico de destruição da capacidade produtiva da indústria de
defesa nacional, ou seja, de um novo ciclo de desindustrialização como o
que marcou o país nos anos 1990.
Para que o país consiga superar a crise
econômica e política, afastando o fantasma da desindustrialização, é
necessário repensar as estratégias de desenvolvimento de suas indústrias
inovadoras, de forma a assegurar a sobrevivência destas empresas, que
via de regra dependem muito mais diretamente dos investimentos estatais
do que das exportações. O Brasil tem hoje a chance de estar entre os
países emergentes que conseguem assegurar sua defesa com seus próprios
sistemas de alta tecnologia, mas corre o risco de assistir à
desindustrialização de sua base produtivo-tecnológica e perder tal
possibilidade. Tudo dependerá da prioridade com que a política
industrial do setor de defesa será conduzida nos próximos anos.
BIBLIOGRAFIA
ABIMDE (2015). Estudo FIPE–Fundação Pesquisa Econômicas: Cadeia de Valor e Importância Socioeconômica do Complexo de Defesa e Segurança no Brasil. Associação Brasileira das Indústrias de Materiais de Defesa e Segurança. 12/08/3015. <http://www.abimde.org.br/downloads> .
ARRIGHI, G. (1996). O Longo Século XX: dinheiro, poder e as origens de nosso tempo . Ed. Contraponto: Rio de Janeiro.
KERR OLIVEIRA, L.; PEREIRA BRITES, P. V. & SILVA REIS, J. A. (2013). A guerra proxy na Síria e as disputas estratégicas russo-estadunidenses no Oriente Médio. Boletim Mundorama, 20/09/2013. <http://mundorama.net/2013/09/20/a-guerra-proxy-na-siria-e-as-disputas-estrategicas-russo-estadunidenses-no-oriente-medio-por-lucas-kerr-de-oliveira-pedro-vinicius-pereira-brites-e-joao-arthur-da-silva-reis/> .
QUEDI MARTINS, J. M. (2013) [org.]. Relações Internacionais Contemporâneas 2012/2: estudos de caso em política externa e de segurança. 1. ed. (Série Cadernos ISAPE). Instituto Sul-Americano de Política e Estratégia, ISAPE: Porto Alegre, RS.
RASLER, K. & THOMPSON, W. R. (2005). Global War and the Political Economy os Structural Change. p. 301-331. In: MIDLARSKY, M. I. (2005). [org]. Handbook of War Studies II. 4ª ed. The University of Michigan Press: Ann Arbor, Michigan. EUA.
SIPRI (2015). Military Expenditure Database. Stockholm International Peace Research Institute. Estocolmo, Suécia. <http://www.sipri.org/research/armaments/milex/milex_database> .
Prof. Dr. Lucas Kerr Oliveira, professor adjunto da Universidade Federal da Integração Latino-Americana, UNILA.
Patrícia de Freitas, bacharel em Relações Internacionais e Integração pela Universidade Federal da Integração Latino-Americana, UNILA
Fonte:
KERR OLIVEIRA, L. & FREITAS, P. (2015). Crises e Guerras que marcam a instabilidade sistêmica global: perspectivas para a Indústria Nacional de Defesa no Brasil. Mundorama, Revista de Divulgação Científica em Relações Internacionais, 05/11/2015. Brasília, DF. ISSN 2175-2052. <mundorama.net/2015/11/05/crises-e-guerras-que-marcam-a-instabilidade-sistemica-global-perspectivas-para-a-industria-nacional-de-defesa-no-brasil-por-lucas-kerr/>
Foto: Ministério de Defesa da Rússia |
Crise na Ucrânia |
Zonas petrolíferas nas regiões disputadas do Mar do Sul da China |
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