A hegemonia alemã na Europa
Nesta segunda-feira, 23 de novembro de 2015, no Clube de Cultura de Porto Alegre, ocorre um debate entre o prof. Dr. Paulo G. Fagundes Visentini e o prof. José Miguel Quedi Martins sobre o "Novo papel da Alemanha: derrotada em 1945, dona da Europa em 2015".
Referente a este tema, recomendamos a leitura do artigo de Emmanuel Todd:
TODD, Emmanuel (2014). La France s’est mise en état de servitude volontaire par rapport à l’Allemagne. Les Crises, 01 setembro 2014.
Olivier Berruyer (OB): Emmanuel Todd, como você vê a crise atual com a Rússia?
Emmanuel Todd (ET): Há
alguma coisa estranha, irreal, no atual sistema internacional. Alguma
coisa não faz sentido: todo mundo dedicado a atacar uma Rússia que mal
chega aos 145 milhões de habitantes, que se reergueu, é verdade, mas em
relação à qual ninguém pode supor que volte a ser potência dominante, em
escala mundial, nem mesmo em escala europeia. A força da Rússia é
fundamentalmente defensiva. Manter a integridade de seu território
imenso já é problemático, com população tão reduzida, comparável à do
Japão.
A
Rússia é uma potência de equilíbrio: seu arsenal nuclear e sua
autonomia energética fazem com que possa desempenhar o papel de
contrapeso aos EUA. A Rússia pode permitir-se acolher Snowden e ajudar a
defender as liberdades civis no Ocidente. Mas a hipótese de uma Rússia
que devore a Europa e o mundo é absurda.
OB:
No início de sua carreira você interessava-se muito mais pela URSS –
chegou a prever a desintegração iminente. Hoje, a Rússia não tem mais o
nível hegemônico daquele tempo, e embora a Rússia seja mais democrática
que a URSS, é tratada com ainda mais desconsideração. Por exemplo,
quando a URSS interveio na Tchecoslováquia, em 1968, com seus tanques,
houve protestos, mas rapidamente, em semanas, a histeria acabou. Hoje,
quando não acontece nada nem semelhante, além de uma população que vota
democraticamente na Crimeia a favor de ser reintegrada à casa da mãe
russa, tem-se a impressão de que estaria acontecendo drama terrível, que
justificaria até fazermos guerra à Rússia para devolver a Crimeia,
contra a vontade dos crimeanos, à Ucrânia. Por que o tratamento tão
diferente?
ET: Essa questão não diz respeito só à Rússia,
diz respeito a todo o Ocidente. O Ocidente, com certeza massivamente
dominante, está hoje contudo, em todos os estados que o compõem,
inquieto, ansioso, doente: crise financeira, estagnação ou baixa nos
ganhos, aumento das desigualdades, ausência total de perspectivas e, no
caso da Europa continental, crise demográfica. Se nos colocamos no plano
ideológico, essa fixação contra a Rússia parece ser a procura de um
bode expiatório, melhor, como a criação de inimigo necessário para
manter alguma qualquer mínima coerência no Ocidente. A União Europeia
nasceu contra a URSS; não vive sem o adversário russo.
Mas
também é verdade que a Rússia impõe ao mundo ocidental alguns problemas
de “valores”. Contudo, ao contrário do que sugerem as asneiras
antiputinistas e russofóbicas do Jornal Le Monde, o problema do Ocidente é o caráter positivo e útil de vários valores da cultura e da história russa.
A
Rússia não acompanhou o mundo ocidental na trilha do “liberalismo
total”. Lá, se manteve e reafirmou-se um determinado papel para o
Estado, e, também, uma determinada ideia nacional. É país que está
começando a reerguer-se, inclusive em termos de fecundidade, de
diminuição da mortalidade infantil. O desemprego é baixo.
Sem
dúvida: os russos são pobres e ninguém na Europa ocidental inveja o
sistema russo, também no nível das liberdades. Mas ser russo hoje é
pertencer a uma coletividade nacional forte e protetiva, é a
possibilidade de se projetar mentalmente para um futuro melhor, é estar
andando para alguma coisa. Quem pode dizer a mesma coisa da França?
A
Rússia está em vias de se tornar, sem que esse seja algum tipo de
projeto, uma verdadeira ameaça para os que, no ocidente, fazem ares de
nos governar, perdidos na história, que falam de valores ocidentais, mas
que, como diz, acho, Basile de Koch, “em matéria de valores, só
reconhecem os bursáteis”. Mas já não se trata de conflito entre Oriente e
Ocidente, tradicional, regressivo, no sentido psiquiátrico, no qual os
EUA seriam o motor.
A
crise atual tem tudo a ver com a intervenção europeia na Ucrânia. Se se
escapa do delírio ‘jornalístico’ das mídias ‘ocidentais’, que parecem
ter regredido a 1956, em plena guerra fria ameaçando esquentar, e
observamos a realidade geográfica dos fenômenos, o que se vê, muito
simplesmente, é que o conflito acontece numa zona tradicional de
enfrentamento entre Alemanha e Rússia.
Desde
o início tive a sensação de que os EUA, dessa vez, talvez por medo da
desmoralização depois que a Crimeia quis voltar à Rússia, acompanharam
os passos da Europa, ou, mais, da própria Alemanha, porque é a Alemanha
quem controla a Europa. Veem-se sinais contraditórios vindos da
Alemanha. Às vezes, a Alemanha parece mais pacifista, numa linha de
retirada, de cooperação. Outras vezes, ao contrário, aparece fortemente
contestatária, ou enfrenta declaradamente a Rússia. O vigor dessa linha
dura aumenta dia a dia.
Steinmeier
levou Fabius e Sikorski a Kiev. Mas Merkel vai sozinha, em visita ao
novo protetorado ucraniano. E não é só nesse enfrentamento, que a
Alemanha caminha na frente. No espaço de seis meses, também nas últimas
semanas, quando já estava em virtual conflito com a Rússia nas planícies
ucranianas, Merkel humilhou os ingleses, ao impor-lhes Juncker, com
grosseria inacreditável, como presidente da Comissão Europeia. Evento
ainda mais extraordinário, os alemães começaram a afrontar os EUA,
servindo-se de uma história de espionagem pelos norte-americanos.
É
absolutamente inacreditável, se se conhecem as relações muito íntimas
entre as atividades de informação e inteligência norte-americanas e
alemãs, desde a guerra fria. Parece também hoje, que os serviços alemães
de informação, BND,
também espionam, muito normalmente, os políticos norte-americanos.
Ainda que soe chocante, eu diria que, consideradas as ambiguidades da
política alemã, sou absolutamente favorável a que a CIA monitore
os responsáveis pela política alemã. Espero também que os serviços de
informação franceses façam seu serviço e participem da vigilância sobre
uma Alemanha cada vez mais ativa e aventurosa no plano internacional.
O
que se deve considerar é que essa agressividade antiamericana da
Alemanha é fenômeno novo, que temos de considerar. O estilo é
fascinante. O modo como os políticos alemães falaram dos
norte-americanos manifesta profundo desprezo. Já há importante fundo
antiamericano além-Reno. Pude avaliá-lo quando do lançamento da edição
alemã do meu livro Depois do Império.
Acho que aquele fundo antiamericano explica o sucesso excepcional da
edição em alemão. Já houve até um momento em que o governo alemão zombou
das reprimendas norte-americanas em matéria de gestão econômica.
Contribuir para o equilíbrio da demanda mundial? E depois, o que mais?
A
Alemanha tem seu projeto, de poder, mais do que de bem-estar: comprimir
a demanda na Alemanha, pôr a ferros os países endividados do sul, pôr
uns amendoins ao sistema bancário francês que controla o Eliseu, etc..
Num
primeiro momento, quando a Crimeia foi tomada, estive mais sensível ao
restabelecimento da Rússia: potência que não quer mais se deixar
atropelar e que é capaz de tomar decisões. Hoje, constato que a Rússia
é, fundamentalmente, uma nação em estabilização, e só em estabilização,
por mais que tantos pintem a Rússia como um lobo-mau.
Mas
a verdadeira potência emergente, antes da Rússia, é a Alemanha. A
Alemanha fez um caminho prodigioso, das dificuldades econômicas que
tinha quando da reunificação até o restabelecimento econômico e, na
sequência, a tomada de controle sobre todo o continente, nos últimos
cinco anos. Tudo isso está aí para ser reinterpretado
A
crise financeira não apenas demonstrou a solidez da Alemanha. Ela também
revelou a capacidade da Alemanha para usar a crise da dívida para
baixar a crista de todo o continente.
Se
nos livramos da retórica arcaica da guerra fria, se paramos de sacudir o
chocalho ideológico da democracia liberal e de seus valores, se se para
de dar ouvidos ao blá-blá-blá europeísta, para observar a sequência em
curso de modo a observar a sequência histórica em andamento, de modo
bruto, quase como uma criança, em resumo, se se aceita ver que o rei
está nu, contata-se que:
(1) ao longo dos últimos cinco últimos anos, a Alemanha tomou o controle do continente europeu no plano econômico e político; e que
(2) ao cabo desses mesmos cinco anos, a Europa já está virtualmente em guerra contra a Rússia!
Esse fenômeno
simples é ocultado por uma dupla negação; dois países agem como
ferrolhos para impedir que compreendamos a realidade do que se passa.
Primeiro,
a França, que continua sem admitir que se pôs em estado de servidão
voluntária, na relação com a Alemanha. Não pode fazer diferente, porque
não admite plenamente o crescimento do poder da Alemanha e o fato de que
não está no padrão que lhe permita controlar esse crescimento. Se há
lição geopolítica a extrair da IIª Guerra Mundial, é que a França não
consegue controlar a Alemanha; e que temos de reconhecer as imensas
qualidades de organização e de disciplina econômica... e o não menos
imenso potencial para a irracionalidade política.
Que
a França recusa-se a ver a realidade alemã é uma evidência. Já há algum
tempo venho falando de François Hollande como “vice-chanceler
Hollande”. Pensando bem, de fato, ele é mais um simples “diretor de
comunicação da chancelaria”. Hollande é nada. Alcança níveis
excepcionais de impopularidade, que são efeito, em parte, do servilismo
diante da Alemanha. François Hollande é desprezado como é, pelos
franceses, porque é homem que obedece à Alemanha. Mas todas as elites
francesas, jornalísticas e políticas, estão afundadas no mesmo processo
de negação, de não ver.
(...)
OB: Você diz “A França afinal não pode controlar a Alemanha”: não há o que fazer ou caberia a outro fazer?
ET: Qualquer
outro faria. Da última vez, a tarefa recaiu sobre norte-americanos e
russos. É preciso admitir que o “sistema Alemanha” é capaz de gerar uma
energia prodigiosa. Como historiador e antropólogo, poderia dizer a
mesma coisa do Japão, da Suécia, ou da cultura judia, basca ou catalã.
É
fato: algumas culturas são assim. A França tem outras qualidades.
Produziu ideias de igualdade, de liberdade, uma arte de viver que
fascina o planeta, e está fazendo mais filhos que os países vizinhos,
mantendo-se como país avançado no plano intelectual e tecnológico. É
provável que ao final, se se tivesse mesmo de julgar, teríamos de
admitir que a França tem visão mais equilibrada e satisfatória da vida.
Mas
não se trata de metafísica ou de moral: falamos de relações
internacionais de força. Se um país especializa-se na indústria ou na
guerra, é preciso levar isso em conta e verificar como essa
especialização econômica, tecnológica e de potência, pode ser
controlada.
OB: E qual o outro país que está em surto de negação?
ET: Os
EUA. A negação americana foi formalizada no primeiro estágio da
emancipação da Alemanha, quando da guerra do Iraque em 2003 e da
associação Schröder-Chirac-Putin; alguns estrategistas norte-americanos
disseram naquele momento que “É preciso castigar a França, esquecer [o
que fez a] Alemanha e perdoar a Rússia” (“Punish França, forget Germany, forgive Russia” [1]). Por quê? Porque a chave do controle da Europa pelos EUA, herança da vitória de 1945, estava em os EUA controlarem a Alemanha.
Decretar
a emancipação alemã de 2003 seria decretar o início da dissolução do
império americano. Essa estratégia de avestruz instalou-se,
calcificou-se e parece hoje impedir que os norte-americanos vejam
corretamente a emergência da Alemanha, nova ameaça contra eles, segundo
minha avaliação, mais perigosa, no tempo, para a integridade do império
americano, que a Rússia, exterior e distante do império.
A
Alemanha tem papel complexo, ambivalente, mas é um motor dentro da
crise: frequentemente a nação alemã aparece como pacifista; e a Europa,
controlada pela Alemanha, como agressiva. Ou o contrário. A Alemanha tem
dois chapéus: a Europa é a Alemanha, e a Alemanha é a Europa. Pode,
portanto, falar a várias vozes. Quando se conhece a instabilidade
psíquica que caracteriza historicamente a política externa alemã, sua
bipolaridade, no sentido psiquiátrico, na relação com a Rússia, é muito
inquietante.
Sei
que estou falando muito duramente, mas a Europa está à beira da guerra
contra a Rússia, e não temos tempo para mesuras e meias palavras.
Populações de língua e de cultura e de identidade russas são atacadas na
Ucrânia oriental, com aprovação, apoio e sem dúvidas, agora, já também
com armas da União Europeia.
Penso
que os russos sabem que estão, de fato, em guerra com a Alemanha. O
silêncio deles quanto a isso, como no caso dos franceses e
norte-americanos, não é recusa a ver a realidade. É boa diplomacia,
porque os russos precisam de tempo. O autocontrole deles, o
profissionalismo, como diriam Putin ou Lavrov, merecem admiração.
Até
o momento, nessa crise, a estratégia dos norte-americanos tem sido
correr na retaguarda dos alemães, para que ninguém veja que eles já não
controlam a situação na Europa. Esses EUA, que não mais controlam e
agora têm de aprovar as aventuras regionais dos ex-vassalos, tornaram-se
um problema, o problema geopolítico n.1, hoje.
No
Iraque, esses EUA já tiveram de cooperar com o Irã, seu inimigo
estratégico, para fazer frente aos jihadistas subvencionados pela Arábia
Saudita. A Arábia Saudita tem, como a Alemanha, estatuto de aliado
sênior; a traição, nesse caso, então, não foi decretada...
Na
Ásia, os Coreanos do Sul, por ressentimento contra os japoneses,
começam a conversar com os chineses, rivais estratégicos dos EUA. Por
todos os cantos, não só na Europa, o sistema norte-americano se fende,
derrete-se ou coisa pior.
A
potência da hegemonia alemã na Europa merece portanto análise mais
detalhada, numa perspectiva dinâmica. É preciso explorar, projetar,
prever, para orientar-se nesse mundo que está nascendo. É preciso
aceitar ver esse mundo como o vê a escola estratégica realista, por
exemplo, de Henry Kissinger, quer dizer, nada de considerar valores
políticos: só puras relações de força entre sistemas nacionais.
Se
se pensa desse modo, constata-se que a Rússia não é o problema do
futuro; que a China ainda não é grande coisa em termos de poder militar.
No nosso mundo econômico globalizado, podemos pressentir a emergência
de um novo cara a cara entre dois grandes sistemas: a nação-continente
norte-americana e esse novo império alemão, império econômico-político
que as pessoas insistem em ainda chamar de “Europa” só por hábito. É
interessante avaliar a relação de força potencial entre os dois.
Não
sabemos como terminará a crise ucraniana. Mas temos de fazer o esforço
de nos projetar até depois dessa crise. O mais interessante é tentar
imaginar o que uma vitória do “ocidente” produzirá. Porque se chega, por
aí, a uma descoberta espantosa: se a Rússia fracassar, ou se ela apenas
ceder, deixar de resistir, a desproporção das forças demográficas e
industriais, entre o sistema alemão (com a Ucrânia já acrescentada) e os
EUA levarão, muito provavelmente, a uma transferência do centro de
gravidade dentro do ocidente, e ao naufrágio do sistema norte-americano.
Hoje, o que os EUA mais têm a temer é que a Rússia fracasse.
Mas
uma das características da situação é que os atores são incompetentes e
bem pouco conscientes do que fazem. Não falo só de Obama, que nada
compreende da Europa, nasceu no Havaí e viveu na Indonésia, para ele só
existe a área do Pacífico.
Mas
falo dos geopolitólogos norte-americanos clássicos, de tradição
“europeia”, que também estão completamente ultrapassados. Penso em
particular em Zbigniew Brzezinski o qual, já muito envelhecido,
permanece como teórico do controle sobre a Eurásia, pelos EUA. Obcecado
contra a Rússia, ele não viu que a Alemanha se aproximava. Não viu que
os militares norte-americanos, ao estender a OTAN até os estados do
Báltico, até a Polônia (...) estavam, de fato, recortando um império
para a Alemanha; de início, só império econômico, mas agora já império
político.
A Alemanha começa a entender-se com a China, o outro grande exportador mundial.
Será
que em Washington ninguém se lembra de que, nos anos 1930s, a Alemanha
oscilou por muito tempo entre a aliança chinesa e a aliança japonesa, e
que Hitler começou por armar Chang Kai-Chek e formar seu exército?
A
extensão da OTAN para o leste pode, no fim, trazer uma espécie de
versão B do pesadelo, para Brzezinski: a reunificação da Eurásia,
independente dos EUA. Fiel às suas origens polonesas [Zbig] só temia uma
Eurásia sob controle russo. Agora está exposto ao risco de passar à
história como mais um daqueles poloneses absurdos que, de tanto que
odeiam a Rússia, promoveram a grandeza da Alemanha.
OB: Como você sugeriu, proponho analisarmos os gráficos seguintes, em que se comparam os EUA e uma Europa germanocêntrica.[2] (gráficos das páginas 8 e 9 do “scribe” em epígrafe)
ET: O
que esses gráficos mostram é a superioridade industrial potencial da
Europa. Sim, a Europa alemã é heterogênea e intrinsecamente frágil,
potencialmente instável, mas o mecanismo em curso de hierarquização das
populações começa a definir uma estrutura de dominação coerente e por
vezes eficaz. A potência alemã recente construiu-se porque populações
antigamente comunistas foram postas a trabalhar.
É
algo de que os próprios alemães com certeza não têm plena consciência, e
aí provavelmente está a fragilidade deles: a dinâmica da economia alemã
não é só alemã. Parte do sucesso de nossos vizinhos de além Reno advém
do fato de que os comunistas cuidaram com extrema atenção da educação.
Deixaram como herança não só sistemas industriais obsoletos, mas, também
populações excepcionalmente bem educadas.
Comparar
a situação da educação da Polônia antes da guerra, e a que se tem hoje,
é admitir que o país deve uma parte dos seus sucessos econômicos atuais
ao comunismo – ou talvez pior que isso: à Rússia. Um dia saberemos em
que estado a administração alemã deixará a Polônia.
Fato
é que a Alemanha substituiu a Rússia como potência que controla o leste
europeu e conseguiu fazer dele uma potência. A Rússia, ela, foi
debilitada pelo controle sobre democracias populares, o custo militar
não compensado pelo ganho econômico. Graças aos EUA, o custo do controle
militar é, para a Alemanha, próximo de zero.
(clique na imagem para aumentar) |
OB: Este mapa mostra
o novo império alemão, como está hoje, segundo você. Vê-se o lugar
central da Alemanha face aos seus diferentes satélites, ou, como você
diz bem, países que se puseram em estado de servidão voluntária. O que
esse mapa lhe sugere?
ET: Gostaria
que esse mapa ajudasse todos a tomarem consciência do fato de que a
Europa mudou de natureza; é mapa que evoca não só o presente, mas também
um futuro possível muito próximo. Os mapas que a Comunidade europeia
distribui são mapas que aspiram a ser igualitários e que já nada dizem
sobre a realidade. Esse mapa é uma espécie de primeira tentativa para
organizar visualmente a nova realidade da Europa. Ajuda a tomar
consciência do caráter central da Alemanha e do modo como controla o
continente europeu. A primeira coisa que esse mapa procura dizer é que
existe um espaço informal maior que a Alemanha: “o espaço alemão
direto”, que inclui países cujas economias dependem da Alemanha num
nível quase absoluto.
OB: É uma zona de cerca de 130 milhões de habitantes...
ET: Realmente.
Mas esse espaço não é a única razão da influência alemã. Creio que a
Alemanha jamais teria sido capaz de tomar o controle do continente sem a
cooperação da França. É outro elemento que está mostrado nesse mapa: a
servidão voluntária da França e de seu sistema econômico e, no interior
desse quadro, a aceitação, pelas elites francesas, do que talvez seja
para elas – mas não para o povo francês – a prisão dourada do euro. Os
bancos franceses apenas sobrevivem, nessa prisão dourada. A França
acrescenta seus 65 milhões de habitantes ao espaço direto alemão, e
confere a ele também uma espécie de massa crítica de escala continental.
OB: Quase 200 milhões...
ET: Significa
que já estamos acima da escala russa ou japonesa. O bloco negro e cinza
representa o coração da potência alemã; mantém submissa a Europa do
sul, convertida em zona dominada no interior do próprio sistema europeu.
A Alemanha é detestada na Grécia e, sem dúvida em todo o sul da Europa
por causa da mão de ferro sobre o orçamento. Mas esses países não
conseguem nada, porque a Alemanha, com seu espaço próximo mais a França,
tem a capacidade de dominar tudo. São os países que aparecem em
laranja, no mapa.
Proponho
também outra categoria específica de país, em vermelho, os que chamei
de “satélites russófobos”. São países que têm certo grau de liberdade.
Estão no espaço da soberania alemã, mas não classificaria o estatuto
desses países como de servidão, porque são países que têm reais
aspirações autônomas e, principalmente, uma paixão antirrussa.
Veja:
a França já não tem qualquer sonho; sob governo do PS, da UMP de
Sarkozy e de seus fiscais de finanças, a França só aspira a obedecer, a
imitar e a embolsar os jetons pelo comparecimento. Polônia, Suécia,
países bálticos, esses sim, tem um sonho: arrancar a pele da Rússia. A
participação voluntária desses países no espaço de dominação alemã lhe
permite continuar sempre com o mesmo sonho.
Mas
me pergunto se, mais profundamente, a Suécia, já convertida à direita,
não estará em vias de voltar a ser completamente o que era antes de
1914, quero dizer, germanófila?
Os
satélites russófobos merecem categoria especial, porque fazem parte das
forças que podem ajudar a Alemanha a tomar o caminho errado, ao
endeusá-la e ao recusar-se a criticá-la. A submissão francesa aparecerá
aos historiadores do futuro como uma contribuição fundamental ao
desequilíbrio psíquico futuro da Alemanha.
Para
Suécia ou Polônia ou os Bálticos, a coisa é outra. Ali se trata
francamente e diretamente de empurrar a Alemanha para a violência das
relações internacionais. Não incluí Finlândia e Dinamarca nessa
categoria. Ao contrário da Suécia, a Dinamarca é autenticamente liberal
por temperamento. Seu laço com a Inglaterra vai além do simples
bilinguismo tipicamente escandinavo de boa parte da população. A
Dinamarca olha para o ocidente e não é obcecada pela Rússia.
A
Finlândia aprendeu a viver com os soviéticos, e não tem razão
verdadeira para duvidar da possibilidade de se entender com os russos. É
verdade que jamais esteve em guerra contra eles. Pertenceu ao Império
dos Czares entre 1809 e 1917, mas sob a forma de um grão-ducado,
situação que, de fato, permitiu-lhe escapar de ser tomada pelos suecos. A
verdadeira potência colonialista, para os finlandeses, é a Suécia; e
duvido que queiram voltar a viver sob liderança sueca.
No
mapa, Finlândia e Dinamarca encontram-se pois dominadas, como os países
do sul. Absurdo? A economia finlandesa já paga o preço da agressão
europeia contra a Rússia. E a Dinamarca será posta em situação difícil
com a fuga dos ingleses.
O
Reino Unido, descrevi-o como “em vias de evasão”, porque os ingleses
não podem aderir a um sistema colonial que lhes provoca horror. Os
ingleses não têm o hábito, como certos franceses, de obedecer aos
alemães. Mas também porque pertencem a outro mundo, muito mais
excitante, menos velho e autoritário que a Europa alemã, a “anglosfera”:
EUA, Canadá, as antigas colônias...
Já
disse noutra ocasião, que simpatizo com o dilema dos ingleses. Deve ser
realmente horrível ser britânico, face a uma Europa tão importante nas
trocas comerciais, mas mentalmente artrítica.
OB: Você acha que deixarão a União Europeia?
ET: Claro
que sim! Os ingleses não são mais fortes ou melhores, mas eles têm por
trás, os EUA. No que me concerne, francesinho confrontado ao
desaparecimento da autonomia da minha nação, se puder escolher entre a
hegemonia alemã e a hegemonia norte-americana, escolheria a hegemonia
norte-americana sem pensar duas vezes. E os ingleses? Você acha que
escolherão o quê?
Associei
a Hungria aos britânicos, nessa tentativa de evasão. Viktor Orban tem
má reputação na Europa, aparentemente por ser autoritário e “linha
dura”. Talvez seja, mas sobretudo porque resiste contra a pressão alemã.
Podemos nos perguntar por que a Hungria não é antirrussa, dado que
passou por violenta repressão soviética em 1956. Como tantas vezes, o
“apesar disso” tem de ser substituído por um “por isso mesmo”. Em 1956,
só a Hungria encarou. Mais que os poloneses ou os tchecos – que
praticamente não moveram uma palha – a Hungria pode orgulhar-se da
própria história sob dominação dos russos. Dado que não tem do que se
envergonhar, a Hungria pode perdoar.
Uma
bela piada húngara dos anos 1970 talvez ajude a compreender as
diferenças leste-europeias: “Em 1956, os húngaros comportaram-se como
poloneses, os poloneses como tchecos e os tchecos como porcos”.
Representei
a Ucrânia como “em vias de ser anexada”. A Ucrânia não aparece
imediatamente como a anexação europeísta sonhada. Trata-se de anexação
de uma zona cujo estado e indústria estão em decomposição, uma
desintegração que se vai acelerar pelos acordos de livre comércio com a
União Europeia. Mas é também a anexação, a custo muito baixo, de uma
população ativa. Ou, fundamentalmente, o novo sistema alemão repousa
sobre a anexação de populações ativas.
Num
primeiro momento foram utilizadas as populações de Polônia,
Tchecoslováquia, Hungria, etc. Os alemães reorganizaram seu sistema
industrial, utilizando o trabalho a preço baixo dessas populações. Na
Ucrânia há população ativa de 45 milhões de pessoas. Com seu bom nível
de formação herdado ainda da época soviética, será presa excepcional
para a Alemanha; a possibilidade de uma Alemanha dominante por muito
tempo e, sobretudo, com seu império, passando imediatamente a ser
potência econômica efetiva, acima dos EUA. Pobre Brzezinski!
OB: E quanto às questões energéticas? (Vide mapa p. 14 do “scribe” em epígrafe)
ET: Aqui,
os principais gasodutos são indicados para demolir um mito. O mito de
que os russos, pela construção do gasoduto Ramo Sul desejariam apenas
escapar de ter suas relações energéticas controladas pela Ucrânia. Se se
consideram todos os trajetos de gasodutos existentes, o único ponto em
comum entre eles não é que todos passem pela Ucrânia. Há um segundo
ponto em comum entre todos eles: todos chegam à Alemanha. De fato, o
verdadeiro problema dos russos não é só a Ucrânia, é também o controle
(dos alemães) sobre o ponto de chegada dos gasodutos. Esse é também o
problema dos europeus do sul.
Se
pararmos de pensar com ingenuidade sobre a Europa, como se fosse
sistema igualitário, que teria problemas com o urso russo, vê-se logo
que a Alemanha pode também ter interesse em que aquele gasoduto Ramo Sul
não seja construído, porque poria fora de seu controle os fornecimentos
de energia para toda a parte da Europa que a Alemanha domina.
A
questão estratégica do Ramo Sul não é portanto apenas questão entre
Oriente e Ocidente, entre Ucrânia e Rússia, mas é questão também entre a
Alemanha e a Europa dominada do sul. Mas, mais uma vez, esse mapa não é
mapa definitivo; é mapa para criar um começo de imagem da realidade da
Europa; e para nos afastar da ideologia dos mapas “neutros” que escondem
o que a Europa está em via de se converter: um sistema de nações
desiguais, presas numa hierarquia que compreende países severamente
dominados; países agressivos; um país dominante e um país que é a
vergonha do continente, o nosso, a França.
OB: Você não fala da questão turca...
ET: Não
falei porque o assunto não é mais esse. Os europeus não querem mais a
Turquia. Mas, o que é muito mais importante, os turcos não querem mais a
Europa. Que, aliás, quereria entrar nessa prisão de povos?
O desequilíbrio industrial em favor da União Europeia em relação aos EUA é espetacular.
OB:
Os gráficos permitem comparar as potências relativas da nação americana
e desse novo ‘império alemã’ (ver gráficos pp. 15 e 16 do “scribe” em
epígrafe). [3]
ET: Para mim, o gráfico mais interessante é o que mostra as populações ativas industriais (no
fim do parágrafo). O desequilíbrio industrial em favor da União
Europeia em relação aos EUA é espetacular. O fato de que há na Europa
setores industriais ainda subdesenvolvidos não é negativo, ao contrário:
no domínio industrial na Europa, há capacidades de expansão nas zonas
de baixos salários. Esse desequilíbrio é que permitiu, sem dúvida, que a
Alemanha condenasse à morte o sistema industrial norte-americano. No
atual estado de coisas, quem mais quer o Tratado da Parceria
Transatlântica é a Alemanha.
OB: A distância da Alemanha, para a Europa, aparece bem no nível do PIB real (ver gráficos pp. 17 a 22 do “scribe” em epígrafe [4]).
ET: Nesses
gráficos vê-se também a implacável hierarquização da Europa em torno do
epicentro alemão a partir de 2005: a queda dos países europeus em
relação à Alemanha, inclusive dos grandes países, como França ou Reino
Unido. Vê-se nessas curvas a rapidez de uma evolução que está só
começando. Talvez parte do povo alemão sofra com baixos salários, mas,
globalmente, o PIB por habitante sempre termina por pender a favor da
Alemanha. Estamos andando em direção a um sistema no qual os alemães
serão beneficiários do esmagamento dos sistemas industriais do resto do
continente. Observa-se também que, em relação a esse continente sob
controle alemão, os EUA não são sequer comparáveis em termos de
população.
O aumento do poder do sistema alemão sugere que EUA e Alemanha estão em trilha de conflito.
OB:
A integração da população ucraniana pelo sistema alemão representaria
um salto qualitativo nesse desequilíbrio dinâmico. É população numerosa,
mas pobre e que produz pouco...
ET: Sim,
mas anexar pobres geograficamente contíguos e politicamente
controláveis, num mundo globalizado, sedento de mão de obra a baixo
preço, sim, pode ser boa vantagem. Daqui em diante nosso mundo será cada
vez mais pós-democrático e desigual. Contém portanto virtualidades de
expansão em zonas nas quais os salários sejam muito baixos. E a vantagem
da Ucrânia para o novo império alemão é, precisamente, que a Ucrânia
não existe, é dupla, tripla, é um sistema em desintegração. Na
realidade, a Ucrânia nunca existiu como entidade nacional que
funcionasse corretamente. É um falso estado, agora em falência.
A
prova fundamental da incapacidade do estado na Ucrânia, e disso pouco
se fala, é o papel que desempenharam os líderes do oeste da Ucrânia, da
periferia. Ficamos indignados, contam-se os deputados, os ministros, mas
os ucranianos do oeste, no conjunto, representam nada, ou bem pouca
coisa. O que chama a atenção é a inação dos ucranianos do centro do
país, os que falam ucraniano, que não apreciam muito os russos, que, na
origem, eram da religião ortodoxa, mas que não são atraídos pela extrema
direita.
O
crescimento do poder do oeste da Ucrânia mostra até que ponto a Ucrânia
central, majoritária, está atomizada e incapaz de organizar-se,
pré-estatal. A confrontação que se trava entre a extrema direita
ucraniana e os pró-Rússia do leste da Ucrânia evidencia a inexistência
histórica do país.
Os
ucranianos do oeste querem aderir à Europa. É completamente normal para
eles: por que movimentos de extrema direita que têm uma tradição de
colaboração com a Alemanha nazista se recusaria a aderir a uma Europa
sob controle alemão? Isso posto, a Alemanha ainda não realizou esse
excepcional ganho ucraniano. A partilha, ou, antes, a guerra, está só
começando.
Para
os ucranianos do centro do país, creio que a questão ainda não está
resolvida: o sistema vai continuar a desintegrar-se: o PIB vai
contrair-se, a situação vai agravar-se, e penso que aí está a verdadeira
razão pela qual os russos têm-se mostrado tão prudentes, absolutamente
resistentes à guerra, e, ao contrário do que se ouve dizer, sem nenhuma
vontade de anexar a Ucrânia.
A
Rússia não teme sanções ocidentais. Mas absolutamente não deseja ser
odiada na Ucrânia central. A Ucrânia está desconfiada da Rússia na sua
massa central no estágio atual, mas é preciso reconhecer que o russos
tem notável capacidade, historicamente comprovada, para jogar com o
espaço e o tempo.
Depois
de dois anos de serem tratados pela Europa alemã, o que pensará a
população de Kiev? Pode acontecer até que desejem voltar na direção de
Moscou. Sistema em processo de desintegração não adere a nada; só
continua a desintegrar-se.
OB:
Voltemos à potência global do sistema norte-americano, que está tão
longe da Ucrânia e portanto tem baixa capacidade para se beneficiar da
integração-desintegração dentro do “sistema ocidental”.
ET: “Sistema
americano”, segundo Zbigniew Brzezinski, é ter os EUA no controle das
duas nações industriais da Eurásia, a saber: Japão e Alemanha. Mas isso
só funciona na hipótese de os EUA serem claramente superiores em termos
de peso industrial [vide tabela adiante].
PARTES DA PRODUÇÃO INDUSTRIAL MUNDIAL EM 1928 E 2011 (em %)
| ||
1928
|
2011
| |
Estados Unidos
|
44,80
|
17,21
|
Alemanha
|
11,6
|
5,7
|
Reino Unido
|
9,3
|
3,2
|
França
|
7,0
|
2,7
|
URSS/Rússia
|
4,6
|
1,9
|
Itália
|
3,2
|
2,8
|
Japão
|
2,4
|
9,1
|
Total dos 7 países
|
82,9
|
43
|
Fontes: 1928, Arnold Toymbee e colaboradores, “Le Monde”, março de 1939”, Gallimard, 1958; 2011, Banco Mundial
|
ET: Se
você vive no mundo encantado da ideologia hoje dominante, a ideologia
de François Hollande, que é a mesma dos anti-imperialistas ingênuos, o
bloco ocidental, união de EUA e Europa mais o Japão tutelado, deve e
pode conter a Rússia. Se se constrói a hipótese de uma boa entente estratégica,
de forte colaboração, o ocidente poderia vencer a economia russa. Pode
ser... Mas há também a China, a Índia, o Brasil, o mundo é vasto...
Mas
se se adentra ao mundo do realismo estratégico, que vê a realidade das
relações de força, sem considerar valores, reais ou míticos, o que se
constata é que há dois grandes mundos industriais desenvolvidos, os EUA
de um lado e, do outro lado, esse grande novo império alemão. A Rússia é
questão secundária.
Temos
pois de ter em vista outra coisa nos próximos 20 anos, além do conflito
Oriente-Ocidente: o crescimento do poder do sistema alemão sugere que
EUA e Alemanha estão na trilha do confronto. É uma lógica intrínseca,
baseada nas relações de força e de dominação. Minha opinião é que é
irrealista imaginar qualquer entendimento pacífico para o futuro. No
estágio em que estamos, ainda se pode reintroduzir a noção de valor. Mas
para destacar que, para um antropólogo, realista à sua moda, ou para um
historiador da longa duração, EUA e Alemanha não têm os mesmos valores.
Confrontados
ao estresse econômico da grande depressão, os EUA, país da democracia
liberal, produziu Roosevelt; a Alemanha, país de cultura autoritária e
desigualitária, produziu Hitler. A fé dos norte-americanos na igualdade
é, sem dúvida, fé muito relativa. Os EUA são o país líder no aumento das
desigualdades econômicas – e, isso, sem falar da segregação racista
contra os negros, problema que está longe de superado, como testemunham as tragédias de Ferguson.
Mas também são, no estágio atual, líderes na tentativa de construir um
mundo unificado com populações de origens muito diversas. Nesse sentido,
a eleição de Obama ainda tem forte peso simbólico, apesar da fadiga do
segundo mandato.
Se
se considera só o conjunto de cidadãos da Alemanha, pode-se dizer que o
aumento das desigualdades econômicas permanece razoável, muito inferior
ao que se observa no mundo anglo-norte-americano. Mas, se se observa o
sistema alemão na sua globalidade europeia, integrando os baixos
salários da Europa do leste e a compressão dos salário do sul, pode-se
identificar um sistema de dominação desiqualitária muito mais forte, em
gestação. A igualdade que resta só concerne ao corpo de cidadãos
dominantes – alemães.
Retomo aqui o conceito de ciência política do antropólogo belga Pierre van den Berghe: a democracia Herrenvolk,
expressão que significa “democracia do povo dos senhores”. Ninguém
precisa pular de indignação. Essas palavras não farão explodir o
planeta. Recentemente, eu disse exatamente o que estou dizendo aqui,
numa entrevista ao jornal alemão Die Zeit.
No início, Pierre van den Berghe aplica a esse conceito de democracia étnica à África do Sul doapartheid,
onde existia um corpo de cidadãos iguais, que funcionava perfeitamente
bem segundo regras liberais e democráticas, mas cuja liberdade e
democracia só se mantinham porque havia dominados. Acontecia o mesmo nos
EUA, na época da segregação racista: igualdade interna dentro do grupo
branco, sempre assegurada pela dominação exercida sobre indígenas,
negros e latinos.
Também se pode descrever Israel como “democracia Herrenvolk”.
O que existe de coesão e de liberdade na democracia israelense é
assegurado pela existência da massa de árabes discriminados como
inimigos.
Se
tivesse de descrever a Europa atual, se tivesse de comentar no plano
político o mapa econômico, eu diria que a Europa, ou o Império Alemão
começam a tomar a forma geral de uma “democracia Herrenvolk”,
tendo, no centro, uma democracia alemã reservada aos alemães
dominantes, e, em torno deles, toda uma hierarquia de populações mais ou
menos dominadas, cujos votos já não têm importância alguma.
Por
esse modelo compreende-se melhor por que, quando se elege um presidente
na França, nada acontece. Porque ele já não tem poder algum;
especialmente sobre o sistema monetário. Estamos então com uma
democracia na qual a liberdade de imprensa, de opinião e outras são
perfeitamente respeitadas, na qual não há problema algum, mas na qual,
fundamentalmente, a estabilidade do sistema depende da solidariedade
subconsciente dentre do grupo dos dominantes.
Na
Europa que parece estar em construção, os alemães podem ser vistos como
os brancos nos EUA da segregação racista. Hoje, a desigualdade política
é evidentemente mais forte no sistema alemão, que no sistema
norte-americano. Os gregos e os demais não podem votar nas eleições para
o Bundestag,
embora negros e latinos possam votar nas eleições para presidente e para
o Congresso norte-americano. O Parlamento europeu é piada. O Congresso
dos EUA, não.
OB: Depois de tudo que você disse, você acha que deveríamos ser mais vigilantes em relação à Alemanha?
ET: É
verdade que sou pessimista. A probabilidade de que a Alemanha saia-se
bem diminui todos os dias. Já está muito fraca. A cultura autoritária
alemã gera uma instabilidade psíquica sistêmica dos dirigentes, quando
estão em situação de dominação – o que nunca mais aconteceu depois da
guerra. A frequente incapacidade histórica deles, quando estão em
situação de dominação, para imaginar um futuro pacífico e razoável para
todos reemerge também todos os dias, sob a forma de uma mania de
exportar. E acrescento também, para esses dirigentes, a interação com o
absurdismo polonês e com a violência ucraniana. Infelizmente, não vejo o
destino da Alemanha como completo desconhecido...
E
como os alemães vão sair-se mal? A média de idade ou a ausência de
aparelho militar pode servir como freio no processo, mas o que se
constata é, a cada semana, mais uma radicalização na postura dos
alemães. Pouco caso com os ingleses, desprezo pelos americanos,
desavergonhada visita de Merkel a Kiev. A relação com os franceses, cuja
servidão voluntária é essencial para o controle da Europa, será
reveladora.
Mas
já a conhecemos. Com o negócio da venda dos Mistral à Rússia: os
dirigentes alemães pedem que os franceses liquidem o que lhes resta de
indústria militar. A cultura alemã é desigualitária, o que torna difícil
a aceitação de um mundo de iguais. Quando se sentem mais fortes, os
alemães suportam muito mal qualquer recusa, dos mais fracos, a
obedecer-lhes. Quando pobres que se recusam a obedecer-lhes, a recusa é
percebida como não natural, não razoável.
Na
França é, antes, o contrário disso. A desobediência é valor positivo.
Convivemos com a desobediência, é parte do charme francês, porque existe
também na França um misterioso potencial de ordem e de eficácia.
A
relação que os EUA mantêm com a disciplina e a desigualdade é complexa
de outro modo, e exigiria páginas e páginas de análise. Resumindo,
saltemos à constatação: a relação disciplinada inferior-superior de tipo
alemão dar-se-ia mal por lá.
A
cultura anglo-saxônica não é igualitária, mas é verdadeiramente
liberal. Iguais, desiguais determinam-se do mesmo modo. A diferença
razoável que as famílias fazem entre irmãos levou à noção de diferença
razoável entre indivíduos, entre povos. Essa é a razão do sucesso do
modelo norte-americano: a cultura anglo-norte-americana pode administrar
razoavelmente as diferenças internacionais.
Ao
final, é forçoso constatar que os dois blocos – o norte-americano e o
alemão – são antagonistas por natureza. Combinam todos os elementos
geradores de conflitos: ruptura do equilíbrio econômico bruto, diferença
de valores. Quanto mais depressa a Rússia saia do jogo, quebrada ou
marginalizada, mais depressa essas diferenças se manifestarão.
Em
minha opinião, a verdadeira questão histórica atual – e que ninguém
está levantando – é a seguinte: os norte-americanos aceitarão essa nova
realidade de uma Alemanha que os ameaça? E no caso de resposta
afirmativa: quando?
OB: Quando você profetiza um conflito entre a nação norte-americana e o novo império alemão, você tem certeza de sua profecia?
ET: Claro
que não. Ampliei o campo de prospecção. Descrevo um futuro possível
dentre outros futuros possíveis. Outro futuro possível seria uma
consolidação do grupo Rússia-China-Índia num bloco que se oponha ao
bloco euro-norte-americano. Mas esse bloco euroasiático só poderia
funcionar se o Japão aderisse, o único capaz de pôr o bloco no mesmo
nível tecnológico em que está o ocidente. Mas para que lado penderá o
Japão? Por enquanto, é mais leal aos EUA que à Alemanha. Mas pode
cansar-se dos velhos conflitos ocidentais. O choque atual paralisa sua
aproximação com a Rússia, completamente lógica para o Japão, do ponto de
vista energético e militar, elemento importante do novo curso político
que o novo primeiro-ministro japonês Abe imprimiu ao país. É um risco
para os norte-americanos, que deriva na nova rota alemã agressiva.
OB: Assim sendo há vários futuros possíveis, mas não uma infinidade deles. Talvez quatro, cinco...
ET: Pus-me
a ler ficção científica para desobnubilar o cérebro e abrir o espírito.
Recomendo vivamente exercício desse tipo aos nossos governantes, os
quais, sem saber para onde vão, continuam a marchar depressa e com passo
decidido.
___________________________________________________________
Notas dos trtadutores
[1] Expressão de Condoleeza Rice em 2003 (The Economist).
[3] “Império Alemão” versus EUA 1960-2013: População / “Império Alemão” versus EUA: PIB real / “Império Alemão” versus EUA: Valor industrial agregado
[4] PIB real per capita na Europa 1960-2013 / Alemanha versus EUA 1960-2013
____________________________________________________________
[*] Emmanuel Todd (nasceu
em 16/5/1951) é cientista político, demógrafo, historiador, sociólogo e
ensaísta francês. Ele se formou no Institut d'Etudes Politiques de
Paris e obteve doutorado em História pela Universidade de Cambridge
(Inglaterra). Formou-se Engenheiro de Pesquisas no Instituto Nacional de
Estudos Demográficos (INED); suas investigações em ciências humanas
levaram a acreditar que os sistemas familiares têm um papel fundamental
na história, na formação religiosa e ideologias políticas.
Sua tese de
doutorado discorre sobre a antropologia da família, explorando esses
conceitos que buscam elucidar a história através da interpretação dos
elementos característicos de cada família.
Em 1976, previu o
“colapso iminente” do comunismo europeu oriental na obra “La chute
finale: Essais sur la décomposition de la sphère Soviétique”.
Tradução: Vila Vudu
Acesso via: Castor Filho
Leia mais:
Acesse o artigo original em francês no site Les Crisis:
Acesse a versão do artigo traduzida para o inglês no site Les Crisis:
<http://www.les-crises.fr/translation-germanys-fast-hold-on-the-european-continent-by-emmanuel-todd/>
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Não serão aceitos comentários ofensivos, preconceituosos, racistas ou qualquer forma de difamação.