domingo, 6 de janeiro de 2019

Geohistória das Pandemias: 100 anos da Gripe Espanhola, a maior epidemia do século XX

Carta Capital, 05/01/2019

 100 anos da gripe espanhola, a epidemia do século

1918: Quem diria que uma gripe haveria de ser mais mortífera do que quatro anos de uma guerra insana?




Há cem anos, quando a Primeira Guerra Mundial se aproximava hesitantemente do fim, um Vírus influenza diferente de qualquer outro surgido antes ou depois varreu as ilhas Britânicas, matando soldados e civis. Uma das primeiras vítimas foi o então primeiro-ministro britânico e líder na guerra, David Lloyd George.





Em 11 de setembro de 1918, Lloyd George, entusiasmado pelas notícias dos recentes sucessos dos aliados, chegou em Manchester para ser homenageado com as chaves da cidade. Trabalhadoras em fábricas de munição e soldados de folga aplaudiram seu trajeto da estação ferroviária de Piccadilly até a Albert Square. Mas naquela mesma noite ele sentiu dor de garganta e febre, e desmoronou.

Lloyd George passou dez dias confinado em um leito na prefeitura de Manchester, doente demais para se deslocar e respirando com um aparelho mecânico. Os jornais minimizaram a gravidade de seu estado, por medo de presentear os alemães com um golpe de propaganda. Mas, segundo seu camareiro, a coisa foi “imediata”.



Lloyd George, então com 55 anos, sobreviveu, mas outros não tiveram tanta sorte. Em uma era anterior aos antibióticos e vacinas, a “gripe espanhola” — assim chamada porque a Espanha, neutra na guerra, foi um dos poucos países, em 1918, onde os correspondentes tiveram liberdade para relatar o surto – custou a vida de quase 250 mil britânicos.

Cruelmente para um país que tinha visto a nata da juventude masculina ser derrubada pelos canhões alemães, as vítimas, geralmente, eram adultos entre 20 e 40 anos. A mortalidade foi o contrário da maioria das temporadas de gripe, quando os óbitos atingem principalmente os idosos e as crianças com menos de 5 anos.

 

O número total de mortos foi inconcebível: segundo as estimativas mais recentes, entre 50 milhões e 100 milhões de pessoas em todo o mundo pereceram nas três ondas da epidemia, entre a primavera de 1918 e o inverno de 1919. Ajustado pelo crescimento populacional, isso equivale hoje a, aproximadamente, de 200 milhões a 425 milhões de pessoas.



Ao contrário dos dias atuais, quando relatos de novos surtos de gripe aviária no Sudeste da Ásia são monitorados de perto pelo Organização Mundial da Saúde, não houve um sistema de aviso para prevenção. Consequentemente, quando foi relatado, em maio de 1918, que o rei Alfonso XIII estava doente em Madri, a maioria das pessoas levou a gripe espanhola na brincadeira.

O principal conselho era gargarejar com água salgada e isolar-se até que a febre passasse. No entanto, essas regras não se aplicavam aos trabalhadores em munições, que eram instados a “seguir em frente” em nome do esforço de guerra.

Assim como em outras epidemias e pandemias do século XX, tais como a de HIV/Aids, os africanos e asiáticos sofreram proporcionalmente mais que os europeus e norte-americanos. Assim, enquanto a mortalidade média de casos no mundo desenvolvido foi de, aproximadamente, 2%, na Índia, onde morreram 18,5 milhões de pessoas, foi de 6%, e no Egito, com 138 mil baixas, de 10%.

Em regiões isoladas com populações “virgens”, sem imunidade à gripe, o impacto foi realmente incrível – em Samoa Ocidental, por exemplo, um quarto da população foi dizimado. Em comparação, a Samoa Americana não registrou baixas.

A gravidade da epidemia e o padrão peculiar das mortes intrigam os cientistas até hoje. Poucos epidemiologistas acreditam que o surto começou na Espanha, apontando ondas pré-epidêmicas em Copenhague e outras cidades da Europa Setentrional no verão de 1918.

Onde o vírus saltou primeiro das aves para humanos ou algum outro mamífero é ainda mais intrigante, e alguns cientistas dizem que o estado do Kansas, nos EUA, foi um ponto de origem; para outros, o Norte da França ou a China.

No início deste ano, em busca de respostas para uma nova série de podcasts, viajei a Washington para entrevistar um dos principais especialistas mundiais na epidemia de 1918, o patologista molecular Jeffrey Taubenberger, do Instituto Nacional de Alergias e Doenças Infecciosas.

Ele estuda o vírus da gripe espanhola há mais de 30 anos e, no fim de 1990, conseguiu recuperar fragmentos de RNA viral de espécimes patológicos armazenados, retirados de soldados americanos que morreram de gripe em campos do Exército em 1918 e de uma mulher inuit que foi enterrada em uma praia no Alasca, onde o permafrost preservou seu tecido pulmonar da decomposição.

Usando técnicas moleculares modernas, Taubenberger e sua colega Anne Reid ampliaram os fragmentos e, em 2005, publicaram a sequência genética do vírus. Suas descobertas foram chocantes. Antes, epidemiologistas tinham observado que as epidemias de gripe eram precedidas ou seguidas de surtos de doenças semelhantes em cães, gatos e cavalos.

Também se sabia que de vez em quando os vírus da gripe podiam infectar porcos e, é claro, seres humanos, e que os vírus selvagens da doença circulavam em aves aquáticas migratórias. No entanto, quando Taubenberger analisou o genoma da gripe espanhola, descobriu que a maioria de seus genes derivava de um vírus da gripe aviária.

De fato, Taubenberger considerou o vírus H1N1 tão “semelhante ao aviário” que não pôde descartar a possibilidade de que ele tivesse se transmitido diretamente de aves para humanos pouco antes de 1918 – e talvez ainda em 1916.

A descoberta levantou a terrível hipótese de que, no futuro, algum outro vírus influenza aviário – como o H5N1, que circulava então no Sudeste Asiático, ou o H7N9, que atualmente causa infecções esporádicas na China – poderiam subitamente adquirir a capacidade de provocar uma epidemia igualmente devastadora.


Para evitar esse caso, Taubenberger e outros cientistas com acesso ao congelador que contém os vírus são rastreados pelo FBI e têm de usar luvas duplas, um respirador e roupa de proteção completa – como as usadas por profissionais médicos durante a epidemia de ebola no Oeste da África. Eles também devem se submeter a um escaneamento de íris. “É realmente equivalente à autorização de alto sigilo”, diz ele.

A experimentação continuada é necessária para o desenvolvimento de vacinas e outras intervenções médicas. Em ratos, a gripe espanhola H1N1 é extremamente contagiosa, gerando 39 mil vezes mais partículas de vírus que uma variedade moderna.

Ao visar a reação inflamatória, Taubenberger demonstrou que os ratos podem ser protegidos. Mas os cientistas estão longe de descobrir a cura da gripe, muito menos uma vacina universal contra variedades epidêmicas sazonais e futuras.

De modo frustrante, ainda não se sabe onde e quando a gripe espanhola adquiriu seus genes aviários e começou a se espalhar por humanos. Os genes aproximam-se mais de aves aquáticas da América do Norte, mas, apesar de examinar as extensas coleções de aves do Instituto Smithsonian, Taubenberger não conseguiu encontrar restos de autópsias viáveis anteriores a 1918.

Uma teoria é que o chamado evento de disseminação ocorreu no início de 1918, não distante de um acampamento do Exército dos EUA no Kansas que fornecia soldados à Força Expedicionária Americana.

Certamente houve surtos explosivos de uma doença semelhante à influenza no Camp Funston, em Fort Riley, em março de 1918, seguidos de surtos semelhantes ao longo do litoral Leste do país e nos navios que transportavam soldados para a França.

No entanto, os primeiros fragmentos do vírus epidêmico obtidos por Taubenberger datam de maio de 1918, por isso não há como dizer se surtos anteriores foram causados pela variedade epidêmica, em oposição a uma gripe sazonal comum.

Uma teoria rival, preferida pelo virologista britânico John Oxford, é que a epidemia começou em Étaples, um enorme campo militar britânico a uma hora a sudoeste de Boulogne, na França. Com acomodações para até 100 mil soldados, Étaples fica numa rota de aves migratórias próxima ao estuário do Rio Somme, e tinha todas as condições necessárias para um evento de disseminação: aves aquáticas silvestres, mais galinhas e porcos vivendo muito próximos de homens amontoados em barracões sem ventilação.

Étaples também tinha vários hospitais, para onde foram levados para tratamento soldados cujos pulmões tinham sido comprometidos por gases mutagênicos utilizados em batalha.

No inverno de 1917, centenas de soldados britânicos foram atingidos por sintomas semelhantes aos da gripe, e médicos em Étaples registraram 156 mortes. Na época, a epidemia foi chamada de “bronquite purulenta” por causa do pus amarelo que brotava das passagens aéreas maiores dos pulmões em autópsias (alguns médicos acharam que pareciam os danos nos pulmões causados pelo gás fosgênio).

Outra característica proeminente era a cianose, uma coloração arroxeada dos lábios, ouvidos e faces, causada pela falta de oxigênio no coração.

Mas talvez a maior pergunta não respondida seja por que a gripe espanhola se mostrou tão mortal para os jovens adultos? Aqui, a ciência atual tem hipóteses, mas nenhuma boa resposta.

Uma sugestão é que os idosos gozavam de maior imunidade, porque, quando crianças, tinham sido expostos a um vírus epidêmico com formação genética semelhante ao H1N1 da gripe espanhola.

Por outro lado, as pessoas com mais de 28 anos tinham um ponto cego imunológico, porque sua primeira exposição tinha sido à “gripe russa” de 1890, um vírus H3 com uma configuração genética completamente diferente.

Ou talvez o padrão de mortalidade incomum visto em 1918 fosse o resultado de uma exposição ambiental ainda não identificada ou fator de estresse peculiar a jovens adultos na época.

Responder a essas perguntas é importante porque os genes da gripe espanhola continuam circulando em populações humanas e de suínos até hoje. Alguns desses genes são descendentes diretos do vírus de 1918, outros se remisturaram com novos vírus epidêmicos, como o da gripe de Hong Kong de 1968 e o vírus híbrido H1, responsável pela epidemia de gripe suína de 2009.

Como diz Taubenberger, “(o surto de) 1918 causou uma introdução muito bem-sucedida de um vírus semelhante ao avícola em seres humanos que nunca desapareceu em cem anos. Ela realmente foi a mãe de todas as epidemias”.

A epidemia foi especialmente dura para as crianças, talvez mais que para qualquer outro segmento da população. Na Cidade do Cabo, na África do Sul, observou uma testemunha, a onda do outono “deixou órfãs entre 2 mil e 3 mil crianças”.

Em Londres, entretanto, estima-se que 16 mil pessoas tenham morrido entre setembro e dezembro de 1918, na maioria homens e mulheres jovens. O resultado foi que 1919 seria o primeiro ano desde que começaram os registros na Grã-Bretanha em que a taxa de mortalidade superou a de nascimentos.

Hoje há poucas pessoas ainda vivas que podem lembrar daqueles dias sombrios em novembro, quando, segundo o oficial médico-chefe de Manchester, James Niven, “parecia que seria impossível preparar caixões para os mortos, ou coveiros para cavar os túmulos”. Motivo ainda maior para, no ano do centenário da epidemia, nos lembrarmos das experiências dos sobreviventes da Dama Espanhola.


 Fonte: Carta Capital, 05/01/2019
 




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