Carta Capital
03 de março de 2011
Manual prático do "Tea Party"
Luiz Gonzaga Belluzzo
Luiz Gonzaga Belluzzo é economista e professor, consultor editorial de CartaCapital.
03 de março de 2011
Manual prático do "Tea Party"
Luiz Gonzaga Belluzzo
Em meio à euforia que acompanhou a queda do regime de Hosni Mubarak, um jovem engenheiro egípcio manifestava seu júbilo na já lendária Praça Tahrir. Abriu uma faixa de solidariedade aos funcionários públicos de Wisconsin: “O Egito apoia os trabalhadores de Wisconsin – Um só mundo, um só sofrimento”.
A grande recessão provocada pelos abusos da finança desregulada e fraudulenta deixou a maioria dos estados americanos na tanga, como haveria de dizer minha saudosa avó Dona Hermelinda. Nos últimos dois anos, as receitas caíram vertiginosamente e as despesas com os direitos assegurados por lei cresceram rapidamente. Proibidos de se endividar para financiar as despesas correntes, item no qual se abrigam funções públicas como saúde, educação e segurança, talvez desimportantes na opinião dos falcões dos déficits. Os estados continuaram a receber transferências do governo federal para o Medicaid e outros programas sociais.
O presidente Barack Obama, também às voltas com os falcões republicanos, não encontrou meios para socorrer de forma mais efetiva os estados mergulhados numa crise fiscal. Mas em meio ao festival de grana curta, não faltou inspiração aos falcões, ao presidente e aos governadores para promover mais uma rodada de redução de impostos federais e estaduais aos ricos e às empresas.
Definida essa exibição de generosidade, as bordoadas sobraram para os de sempre. Desta vez, os escolhidos para bode expiatório do desarranjo provocado pela finança desvairada foram os sindicatos de funcionários públicos de Wisconsin. O projeto de lei enviado ao Legislativo pelo governador republicano Scott Walker, entre outras “benfeitorias”, elimina a negociação coletiva do rol de direitos dos trabalhadores. Para barrar a investida dos republicanos que, ademais têm maioria no Legislativo do estado, cerca de 70 mil professores, bombeiros e enfermeiras, apoiados por outras categorias de trabalhadores, manifestaram sua inconformidade com a lei diante da sede do Capitólio, em Madison, capital de Wisconsin.
No sábado 19 de fevereiro, a coisa engrossou: o deputado republicano Robin Voss menosprezou a força dos manifestantes e proclamou “o apoio maciço dos que não estavam na praça”. Um punhado de sequazes do governador Walker, gente sabidamente civilizada e cultivada do Tea Party, tentou uma contramanifestação gritando, “passem a lei, passem a lei”. Foram rapidamente cercados pela maioria que gritava “matem a lei, matem a lei” (kill the bill, kill the bill).
Walker joga pesado. Não aceita negociar com os funcionários. Sua intransigência incomoda muita gente no próprio Partido Republicano. Duro na queda, o governador mantém a recusa, a despeito dos sinais emitidos pelos sindicatos de que estão dispostos a fazer concessões. Argumenta o governador que nada tem na mão para ceder. “Assim como quase todos os estados americanos, nós estamos quebrados.” Depois de favorecer as empresas com uma redução de impostos de 117 milhões de dólares, Walker propôs, para cobrir o prejuízo, dobrar o valor da contribuição dos funcionários aos planos de saúde e um aumento substancial no pagamento dos planos de aposentadoria. Isso, naturalmente, além da supressão do direito à negociação coletiva. Os cálculos do Budget Office de Wisconsin asseguram que essas medidas vão proporcionar uma receita de 300 milhões de dólares em dois anos.
Os déficits que assolam os estados americanos nasceram, vou repetir, da forte recessão. Até os lêmures sabem que quando o nível de atividade afunda, o gasto privado sofre forte contração e a receita fiscal desmorona, como aconteceu nos Estados Unidos. A queda das receitas fiscais é acompanhada de aumento das despesas decorrentes de programas de proteção social que ainda conseguiram escapar à sanha antissocial dos conservadores americanos.
Bem disse Warren Buffett que os Estados Unidos atravessam um período de intensa luta de classes. “Só que os ricos estão ganhando”, concluiu o bilionário. A revista The American Prospect publicou uma edição especial sobre o declínio da classe média dos Estados Unidos e a descrença crescente da população na realização do sonho americano.
Há poucas dúvidas entre os especialistas a respeito da razão central da escalada- dos remediados para as camadas inferiores da pirâmide social: a perda de substância industrial da economia. A desindustrialização (palavra maldita para os conservadores) queimou milhões de postos de trabalho na manufatura e na malha de serviços que dá apoio aos complexos industriais. O transplante de fábricas para a China e outros rincões asiáticos destruíram o que Ian Fletcher chamou de ecossistema manufatureiro, isto é, as cadeias de fornecedores, as relações de clientela, os investimentos de longo prazo. “Desindustrialização”, diz ele, “não significa apenas despedir trabalhadores e derrubar edifícios. As indústrias ficam doentes e morrem de uma forma muito mais complicada”.
Até agora a “regressão” socioeconômica da classe média secretou mais ressentimentos do que reações políticas, o que engordou as legiões do conservadorismo fanático. Mas nem o fanatismo dos fundamentalistas cristãos americanos consegue sobreviver ao desemprego elevado, à raquítica criação de empregos de baixos salários, para não falar das famílias – milhões de pessoas – despejadas das residências retomadas pelos bancos. Os desalojados vivem em condições precárias. Alguns refugiaram-se na casa de parentes. Uma fração não desprezível sobrevive em trailers ou até mesmo nos automóveis, onde os desditosos dormem e fazem as refeições.
A sensação de que há algo de podre na Terra das Oportunidades começa a movimentar as frações mais atingidas pela crise. As pesquisas de opinião sobre o movimento dos trabalhadores de Wisconsin, realizadas no sábado 19, mostram que a opinião pública, mesmo os republicanos moderados, não só repudia majoritariamente a subtração de direitos como volta sua ira contra os verdadeiros responsáveis pela crise, os senhores do universo entrincheirados em Wall Street.
Em seu concorrido blog, Chris Weigand faz previsões tão sinistras quanto prováveis: “Estamos chegando muito próximos de uma situação em que os serviços públicos que cuidaram dos americanos por muitas gerações estão perto de desaparecer”.
PS: Usurpando a função dos repórteres, passei a indagar de conhecidos e outros nem tanto se, por acaso, tinham notícia do que ocorria no estado norte-americano de Wisconsin. “Provavelmente uma forte nevasca”, respondeu um cidadão que mastigava uma coxinha junto ao balcão da confeitaria. Esse, ao menos, sabia das condições climáticas da região.
À maioria esmagadora dos brasileiros, inclusive às classes médias e às abastadas, sempre presunçosas da excelência de sua formação e informação, foram subtraídas incompreensivelmente as notícias sobre os acontecimentos em Wisconsin, Indiana e Ohio. Nem fale da suspeita do risco iminente do movimento de protesto transbordar para outros estados americanos.
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