A hegemonia alemã na Europa
Nesta segunda-feira, 23 de novembro de 2015, no Clube de Cultura de Porto Alegre, ocorre um debate entre o prof. Dr. Paulo G. Fagundes Visentini e o prof. José Miguel Quedi Martins sobre o "Novo papel da Alemanha: derrotada em 1945, dona da Europa em 2015".
Referente a este tema, recomendamos a leitura do artigo de Emmanuel Todd:
TODD, Emmanuel (2014). La France s’est mise en état de servitude volontaire par rapport à l’Allemagne. Les Crises, 01 setembro 2014.
Olivier Berruyer (OB): Emmanuel Todd, como você vê a crise atual com a Rússia?
Emmanuel Todd (ET): Há
alguma coisa estranha, irreal, no atual sistema internacional. Alguma
coisa não faz sentido: todo mundo dedicado a atacar uma Rússia que mal
chega aos 145 milhões de habitantes, que se reergueu, é verdade, mas em
relação à qual ninguém pode supor que volte a ser potência dominante, em
escala mundial, nem mesmo em escala europeia. A força da Rússia é
fundamentalmente defensiva. Manter a integridade de seu território
imenso já é problemático, com população tão reduzida, comparável à do
Japão.
A
Rússia é uma potência de equilíbrio: seu arsenal nuclear e sua
autonomia energética fazem com que possa desempenhar o papel de
contrapeso aos EUA. A Rússia pode permitir-se acolher Snowden e ajudar a
defender as liberdades civis no Ocidente. Mas a hipótese de uma Rússia
que devore a Europa e o mundo é absurda.
OB:
No início de sua carreira você interessava-se muito mais pela URSS –
chegou a prever a desintegração iminente. Hoje, a Rússia não tem mais o
nível hegemônico daquele tempo, e embora a Rússia seja mais democrática
que a URSS, é tratada com ainda mais desconsideração. Por exemplo,
quando a URSS interveio na Tchecoslováquia, em 1968, com seus tanques,
houve protestos, mas rapidamente, em semanas, a histeria acabou. Hoje,
quando não acontece nada nem semelhante, além de uma população que vota
democraticamente na Crimeia a favor de ser reintegrada à casa da mãe
russa, tem-se a impressão de que estaria acontecendo drama terrível, que
justificaria até fazermos guerra à Rússia para devolver a Crimeia,
contra a vontade dos crimeanos, à Ucrânia. Por que o tratamento tão
diferente?
ET: Essa questão não diz respeito só à Rússia,
diz respeito a todo o Ocidente. O Ocidente, com certeza massivamente
dominante, está hoje contudo, em todos os estados que o compõem,
inquieto, ansioso, doente: crise financeira, estagnação ou baixa nos
ganhos, aumento das desigualdades, ausência total de perspectivas e, no
caso da Europa continental, crise demográfica. Se nos colocamos no plano
ideológico, essa fixação contra a Rússia parece ser a procura de um
bode expiatório, melhor, como a criação de inimigo necessário para
manter alguma qualquer mínima coerência no Ocidente. A União Europeia
nasceu contra a URSS; não vive sem o adversário russo.
Mas
também é verdade que a Rússia impõe ao mundo ocidental alguns problemas
de “valores”. Contudo, ao contrário do que sugerem as asneiras
antiputinistas e russofóbicas do Jornal Le Monde, o problema do Ocidente é o caráter positivo e útil de vários valores da cultura e da história russa.
A
Rússia não acompanhou o mundo ocidental na trilha do “liberalismo
total”. Lá, se manteve e reafirmou-se um determinado papel para o
Estado, e, também, uma determinada ideia nacional. É país que está
começando a reerguer-se, inclusive em termos de fecundidade, de
diminuição da mortalidade infantil. O desemprego é baixo.
Sem
dúvida: os russos são pobres e ninguém na Europa ocidental inveja o
sistema russo, também no nível das liberdades. Mas ser russo hoje é
pertencer a uma coletividade nacional forte e protetiva, é a
possibilidade de se projetar mentalmente para um futuro melhor, é estar
andando para alguma coisa. Quem pode dizer a mesma coisa da França?
A
Rússia está em vias de se tornar, sem que esse seja algum tipo de
projeto, uma verdadeira ameaça para os que, no ocidente, fazem ares de
nos governar, perdidos na história, que falam de valores ocidentais, mas
que, como diz, acho, Basile de Koch, “em matéria de valores, só
reconhecem os bursáteis”. Mas já não se trata de conflito entre Oriente e
Ocidente, tradicional, regressivo, no sentido psiquiátrico, no qual os
EUA seriam o motor.
A
crise atual tem tudo a ver com a intervenção europeia na Ucrânia. Se se
escapa do delírio ‘jornalístico’ das mídias ‘ocidentais’, que parecem
ter regredido a 1956, em plena guerra fria ameaçando esquentar, e
observamos a realidade geográfica dos fenômenos, o que se vê, muito
simplesmente, é que o conflito acontece numa zona tradicional de
enfrentamento entre Alemanha e Rússia.
Desde
o início tive a sensação de que os EUA, dessa vez, talvez por medo da
desmoralização depois que a Crimeia quis voltar à Rússia, acompanharam
os passos da Europa, ou, mais, da própria Alemanha, porque é a Alemanha
quem controla a Europa. Veem-se sinais contraditórios vindos da
Alemanha. Às vezes, a Alemanha parece mais pacifista, numa linha de
retirada, de cooperação. Outras vezes, ao contrário, aparece fortemente
contestatária, ou enfrenta declaradamente a Rússia. O vigor dessa linha
dura aumenta dia a dia.
Steinmeier
levou Fabius e Sikorski a Kiev. Mas Merkel vai sozinha, em visita ao
novo protetorado ucraniano. E não é só nesse enfrentamento, que a
Alemanha caminha na frente. No espaço de seis meses, também nas últimas
semanas, quando já estava em virtual conflito com a Rússia nas planícies
ucranianas, Merkel humilhou os ingleses, ao impor-lhes Juncker, com
grosseria inacreditável, como presidente da Comissão Europeia. Evento
ainda mais extraordinário, os alemães começaram a afrontar os EUA,
servindo-se de uma história de espionagem pelos norte-americanos.
É
absolutamente inacreditável, se se conhecem as relações muito íntimas
entre as atividades de informação e inteligência norte-americanas e
alemãs, desde a guerra fria. Parece também hoje, que os serviços alemães
de informação, BND,
também espionam, muito normalmente, os políticos norte-americanos.
Ainda que soe chocante, eu diria que, consideradas as ambiguidades da
política alemã, sou absolutamente favorável a que a CIA monitore
os responsáveis pela política alemã. Espero também que os serviços de
informação franceses façam seu serviço e participem da vigilância sobre
uma Alemanha cada vez mais ativa e aventurosa no plano internacional.
O
que se deve considerar é que essa agressividade antiamericana da
Alemanha é fenômeno novo, que temos de considerar. O estilo é
fascinante. O modo como os políticos alemães falaram dos
norte-americanos manifesta profundo desprezo. Já há importante fundo
antiamericano além-Reno. Pude avaliá-lo quando do lançamento da edição
alemã do meu livro Depois do Império.
Acho que aquele fundo antiamericano explica o sucesso excepcional da
edição em alemão. Já houve até um momento em que o governo alemão zombou
das reprimendas norte-americanas em matéria de gestão econômica.
Contribuir para o equilíbrio da demanda mundial? E depois, o que mais?
A
Alemanha tem seu projeto, de poder, mais do que de bem-estar: comprimir
a demanda na Alemanha, pôr a ferros os países endividados do sul, pôr
uns amendoins ao sistema bancário francês que controla o Eliseu, etc..
Num
primeiro momento, quando a Crimeia foi tomada, estive mais sensível ao
restabelecimento da Rússia: potência que não quer mais se deixar
atropelar e que é capaz de tomar decisões. Hoje, constato que a Rússia
é, fundamentalmente, uma nação em estabilização, e só em estabilização,
por mais que tantos pintem a Rússia como um lobo-mau.
Mas
a verdadeira potência emergente, antes da Rússia, é a Alemanha. A
Alemanha fez um caminho prodigioso, das dificuldades econômicas que
tinha quando da reunificação até o restabelecimento econômico e, na
sequência, a tomada de controle sobre todo o continente, nos últimos
cinco anos. Tudo isso está aí para ser reinterpretado
A
crise financeira não apenas demonstrou a solidez da Alemanha. Ela também
revelou a capacidade da Alemanha para usar a crise da dívida para
baixar a crista de todo o continente.
Se
nos livramos da retórica arcaica da guerra fria, se paramos de sacudir o
chocalho ideológico da democracia liberal e de seus valores, se se para
de dar ouvidos ao blá-blá-blá europeísta, para observar a sequência em
curso de modo a observar a sequência histórica em andamento, de modo
bruto, quase como uma criança, em resumo, se se aceita ver que o rei
está nu, contata-se que:
(1) ao longo dos últimos cinco últimos anos, a Alemanha tomou o controle do continente europeu no plano econômico e político; e que
(2) ao cabo desses mesmos cinco anos, a Europa já está virtualmente em guerra contra a Rússia!
Esse fenômeno
simples é ocultado por uma dupla negação; dois países agem como
ferrolhos para impedir que compreendamos a realidade do que se passa.
Primeiro,
a França, que continua sem admitir que se pôs em estado de servidão
voluntária, na relação com a Alemanha. Não pode fazer diferente, porque
não admite plenamente o crescimento do poder da Alemanha e o fato de que
não está no padrão que lhe permita controlar esse crescimento. Se há
lição geopolítica a extrair da IIª Guerra Mundial, é que a França não
consegue controlar a Alemanha; e que temos de reconhecer as imensas
qualidades de organização e de disciplina econômica... e o não menos
imenso potencial para a irracionalidade política.
Que
a França recusa-se a ver a realidade alemã é uma evidência. Já há algum
tempo venho falando de François Hollande como “vice-chanceler
Hollande”. Pensando bem, de fato, ele é mais um simples “diretor de
comunicação da chancelaria”. Hollande é nada. Alcança níveis
excepcionais de impopularidade, que são efeito, em parte, do servilismo
diante da Alemanha. François Hollande é desprezado como é, pelos
franceses, porque é homem que obedece à Alemanha. Mas todas as elites
francesas, jornalísticas e políticas, estão afundadas no mesmo processo
de negação, de não ver.
(...)