domingo, 8 de agosto de 2010

Colômbia e Venezuela ensaiam reaproximação

Carta Maior

08/08/2010

Colômbia e Venezuela ensaiam reaproximação

Martín Granovsky - Página 12



Juan Manuel Santos não precisou abrir o guarda-chuva. Fazia sol sobre a praça Simón Bolívar, justo no momento dos dois principais anúncios de seu discurso de posse. Um, o chamado à concórdia: “Chegou a hora de enterrar os ódios”, disse. O outro, sua disposição a um diálogo “franco e direto” com seu colega venezuelano Hugo Chávez. Com este painel Cristina Fernández voltava à noite para Buenos Aires, de Bogotá. E Néstor Kirchner ficava na Colômbia para completar os bons trabalhos a que deu início na quinta-feira, em Caracas. Aproveitou para seguir em contato com o chanceler venezuelano, Nicolás Maduro, que assistiu à troca de comando. Amanhã se verá. Chávez já disse que estaria dispostos a “virar a página” e a viajar “nos próximos três ou quatro dias a Colômbia”.

Cinco mil guarda-chuvas brancos com um detalhe nas cores da bandeira colombiana (amarelo, azul e vermelho) e uma inscrição que dizia “Posse do Presidente Juan Manuel Santos” foram distribuídos na praça. Os convidados da Colômbia e do mundo os abriram e fecharam umas 15 vezes. As chuvaradas obscureciam, molhavam, passavam e deixavam o sol forte dos 2650 metros de altitude, alternadamente, num ciclo que permitiu escutar uma sinfonia de guarda-chuvas automáticos. “Acompanhamos o povo da Colômbia nesta etapa que se inicia”, disse Cristina Kirchner, antes de regressar. “Aportaremos o possível para que tudo melhore na América do Sul”, disse, em alusão à crise entre Colômbia e Venezuela. O chanceler Héctor Timerman resgatou o que definiu como “a grande vocação do presidente da Colômbia para manter a paz e o diálogo na região”


Sem gente e com palmas
Santos falou com o Congresso atrás de si e sobre uma bandeira colombiana de lâmpadas led que pareciam ondas com o vento. A sua direita e à frente a catedral barroca ficou bonita. Em frente ao presidente eleito, atrás dos convidados, o Palácio da Justiça, um bunker digno da arquitetura fascista, não fosse, neste caso, que suas linhas retas têm uma explicação. Quando o movimento guerrilheiro M-19 ainda estava em plena ação armada, explodiu a construção anterior.

Sem registrar a repressão contra as forças reformistas de Jorge Eliezer Gaitán, o Bogotaço que tão bem relatou Gabriel Garcia Márquez em Viver para contá-la, que abarcou o lugar e bairros inteiros, o centro histórico de Bogotá ontem estava cercado, porque em 2002, quando Álvaro Uribe assumiu seu primeiro mandato, as Forças Revolucionárias da Colômbia realizaram um ataque letal com projéteis fabricados a partir de garrafas.

Santos sequer pediu a presença popular. Desde a noite de sexta-feira, inclusive, as rádios transmitiam um conselho: “Será difícil andar por Bogotá, de modo que se você não tem o que fazer no centro, assista à posse pela televisão”.

Os cinco mil convidados que passaram por cinco anéis de segurança sabiam dessa história? Em todo caso, um burburinho circulou pela praça Bolívar, quando a locutora anunciou, com boa dicção e lentidão, para que entendessem bem: “Os ruídos que serão escutados nesta cerimônia serão a salva de 21 canhonaços a cargo do Exército colombiano e os caças que mais tarde sobrevoarão”. Algo assim como “chicos, sentem-se em seus lugares”. Por precaução, nos balcões neoclássicos do Congresso, que como nos Estados Unidos chama-se Capitólio, havia grupos de franco atiradores e vigias à paisana, de binóculos. Porém, ao contrário de Washington, quando Barack Obama assumiu e convocou milhões, ontem a consigna era o acesso restrito.

A piscada para a Venezuela
Santos não leu seu discurso, que em alguns momentos foi frio. Ganhou algum calor com as referências às diferentes crises que a Colômbia enfrenta. A crise com a Venezuela esteve muito presente. Ao comentá-la, Santos disse textualmente o seguinte: “Assim como não tenho inimigos em nível nacional, tampouco quero tê-los em nível internacional. Um de meus propósitos fundamentais será reconstruir as relações com a Venezuela e com o Equador, restabelecer a confiança e privilegiar a diplomacia e a prudência. A palavra guerra não está em meu dicionário. Quem diz que quer a guerra é quem nunca enviou soldados a uma guerra de verdade. Eu o fiz, e sei o que é enfrentar mortes e consolar os familiares”.

“Agradeço ao bom serviço prestado e às muitíssimas pessoas de boa vontade que se aproximaram, mas prefiro o diálogo franco e direto, e oxalá seja o mais rápido possível. As boas relações beneficiam a todos. Quando os governos são os que disputam, os povos sofrem”.

A Venezuela e a Colômbia romperam relações em 22 de julho último, depois que Uribe acusou a Chávez de ajudar as FARC, coisa que o venezuelano negou vivamente. A guerra a que Santos se refere data de quando foi ministro da defesa de Uribe. Tinha sido ministro de Comércio Exterior de César Gaviria. Ontem aproveitou para citar esse antecedente quando resgatou a colaboração com o Equador e com a Venezuela.

Os bons serviços prestados a que o novo presidente aludiu são os que encarnaram nos últimos dias o ex-presidente Néstor Kirchner e o presidente brasileiro Luis Inácio Lula da Silva. Kirchner e Lula negociaram com Chávez na quinta e na sexta, na cúpula de países da América do Sul e da África, que como se sabe é um dos temas a que Lula prometeu se dedicar quando deixar a presidência, em 1º de janeiro próximo.


Kirchner deu assistência a Caracas como secretário executivo da União Sul americana das Nações. Apesar das suspeitas sobre o alegado chavismo do governo argentino, as posições da Argentina e do Brasil em relação a Chávez são as mesmas desde 2003. Baseiam-se no reconhecimento ao caráter democrático do regime de Chávez, ao objetivo de somar a Venezuela à matriz integradora de todo tipo de energia, e também à meta de conter o amigo que às vezes incomoda pelo tipo de suas relações com terceiros, sejam estes os Estados Unidos ou o Irã.

Sobre a Colômbia ambos os governos também compartilham a mesma postura, tanto que Kirchner definiu para Martin Balza quando o designou embaixador em Bogotá: a não ingerência em assuntos internos. É um princípio geral, naturalmente, mas quando se aplica a um país que combina governo de direita e eleito, mais guerrilhas em atividade pode se interpretar como a segurança de que não haverá espaço para simpatias passivas ou antipatias ativas.

Kirchner já se reuniu com Santos em Buenos Aires. Embora o ex-presidente mantenha silêncio sobre as negociações, o fato de que tenha decidido ficar na Colômbia mesmo depois da volta da Presidenta, e com lugar garantido no Tango 01 [avião presidencial da Argentina], é um dado diplomático. Se ficou em Bogotá é porque as tratativas seguem. E depois do parágrafo de Santos sobre a Venezuela e sua disposição a dialogar de maneira direta, o secretário da Unasul poderia jogar um papel: facilitar a remoção de obstáculos que impedem essa conversação entre Chávez e Santos.

Em sua mensagem o novo presidente disse que “Álvaro Uribe é um colombiano genial e irrepetível”, frase que admite ao menos três leitura, não necessariamente contraditórias entre si. A primeira: que Santos pensa isso de verdade. A segunda: que Santos não queira se separar do apelo popular de Uribe, que deixa a presidência com mais de 70% de aprovação popular. A terceira: se alguém pode ser tão único e irrepetível, é porque já foi. Fez-se passado. Ou, ao menos, isso pode ser o que Santos atribua como destino de Uribe, um hiperativo de 58 anos cumpridos na quarta-feira, a quem parece difícil imaginar aposentado para sempre, tomando sol em Cartagena de Índias.

Saber como e o quanto Santos se distanciará de Uribe, quanto guerreará e poderá, é um bom tema para Nostradamus. Mas o certo é que um líder tão forte como Uribe deixou de ser presidente da Colômbia – e o deixou, aliás, por não conseguir apoio para reformar a Constituição – com o que a simbologia da região muda. Nem sempre essas mudanças representam algo significativo a longo prazo, porque amiúde os políticos duros e populares têm maior margem para negociar, mas podem abrir um tabuleiro diplomático imediato.

Escute-se bem
“A defesa dos direitos humanos será (escute-se bem) um compromisso irrenunciável de meu governo”, disse Santos, em outro destaque principal de sua mensagem. Também citou Eduardo Santos, seu avô, que assumiu como presidente em outro 7 de agosto, de 1938. Proprietário do diário El Tiempo, que ainda existe, Santos avô tomou uma iniciativa que seu neto se privou de recordar. Consta nos arquivos e, talvez, nas tradições orais de uma família do establishment que, em 1941 assinou um pacto de não agressão com a Venezuela.

Santos disse que “chegou a hora de enterrar os ódios” e vaticinou que “chegou a hora da Colômbia”. Foram algumas das frases em que usou um tom de voz mais forte. No entanto, o aplausômetro da praça, que deve levar em conta como atenuante a abundância de funcionários e legisladores fiéis a Uribe, não apontou nenhum desses momentos entre os estelares. Os instantes de aplausos mais fortes, que levantaram de pé os convidados, os que despertaram alguns “bravo!” no público foram os dedicados ao "colombiano irrepetível" ou ao combate contra a guerrilha das FARC e o minoritário Exército de Liberación Nacional (ELN).

“Estou aberto a qualquer diálogo, mas sempre que antes (os guerrilheiros) renunciem às armas, ao sequestro, ao narcotráfico, à extorsão”, disse. Aplausos. “Que libertem os sequestrados e que interrompam a arregimentação de crianças para a guerra”, quase gritou. Aplausos. “E vocês, os que me escutam, sabem que somos eficazes”, disse ainda mais forte. Aplausos eufóricos.

Também prometeu que “não vamos decepcionaros pobres”, consigna com sabor de “Não vou decepcioná-los”, de Carlos Saúl Menem, modelo 89'. Mas tampouco houve aplausos fervorosos. Numa ponta da fileira de guarda-chuvas que subiam e baixavam para não se chocarem entre si, na mesma linha do grandalhão da delegação estadunidense que chegou a ter seu ombro direito molhado porque o rapaz ao lado descarregava a água de seu guarda-chuvas como uma bica, um senhor falava atrás de uma senhora cabisbaixa e fechada, por sua vez, em seu próprio artefato contra a chuva. Seria um tradutor, provavelmente, porque não parou de falar durante todo o ato. Mas a senhora acompanhava a tudo zen ou cochilando. Sua imobilidade chegou a ser muito prolongada. E bem: os aplausos sobre a guerra foram tão fortes que ela acordou.

Tradução: Katarina Peixoto

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